Musa mais que moderna

Numa obra que destaca com eficácia o valor do formalismo, Paulo Ribeiro actualizou discretamente a representação da mulher, reconhecendo uma mudança essencial face à época que lhe serviu de inspiração.

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Os figurinos de José António Tenente produzdem apontamentos irregulares, leves e esvoaçantes Rodrigo Sousa
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O repto desta nova obra, lançado pela melhor direcção artística de sempre da Companhia Nacional de Bailado, a de Luísa Taveira, apontava para uma aproximação à estética e literatura emergentes em Portugal com o Modernismo, há 100 anos.

A este desafio o coreógrafo Paulo Ribeiro deu uma óptima resposta de apropriação – reconhecendo-se bem a sua assinatura – e de absorção, em que a sua capacidade de diálogo com os demais elementos constituintes é nítida e muito recompensada.

Na música de Tinoco sobressaem atmosferas contrastantes de contemplação (com melodias de sopros e cordas) e de exaltação (com percussões aceleradas e crepitantes). Nesta empolgante composição a partitura coreográfica encaixa perfeitamente: umas vezes segue em paralelo e beneficia da ênfase possível de estados psicológicos assim exteriorizados, outras afirma-se em contraponto, enriquecendo uma paisagem rítmica criada por dois tipos de instrumento, o musical e o corporal.

Na ideia de Lídia como musa, presente na poesia de Ricardo Reis, reside um sentido de coibição do desejo da mulher comum que, felizmente, é depois contraposto pelo apelo à acção de Sophia de Mello Breyner Andresen. Enquanto Reis sugere a contenção do amor e a contemplação, Sophia, já numa nova época, incita Lídia a determinar o seu destino, seguindo a sua vontade. Embora Ribeiro tenha erguido uma obra de destaque ao formalismo – no qual é muito eficaz – a posição do artista face a esta tensão conceptual também transparece.

O coreógrafo leva ao palco 13 Lídias que muitas vezes dançam com domínio e serenidade – aspecto que poderá ter um efeito neutralizador na energia do espectáculo –, mas que também se emancipam e individualizam, subvertendo a tónica de colectivo consensual e harmonioso. Um exemplo mais radical dessa subversão é o beijo que dão duas dessas mulheres num momento em que, poderá ler-se, ultrapassaram o estatuto de belas inspiradoras da genialidade dos homens. Esta actualização é discreta, mas está presente e é essencial.

Lídia tem traços coreográficos interessantes de notar: umas frases cingem-se ao potencial de variações do andar; noutras surgem gestos subtis, como deitar a cabeça no ombro da outra ou apoiar o queixo na mão. Misturam-se qualidades com developés altíssimos e lentos seguidos de curvas do torso e contracções sincopadas; peitos de pé elegantes e espirais aéreas sobrepõem-se a saltos que enraízam o corpo no solo, e enquanto uns grupos pulsam ritmadamente os solos ou duetos progridem devagar ou vice-versa.

A justaposição entre o recto e o lânguido é contínua nesta dança e foi muito bem conseguida pela relação dos figurinos de José António Tenente - apontamentos irregulares, leves e esvoaçantes - com o movimento. Um braço é uma asa, um torso é um rajada. Os corpos pincelam um cenário efémero com a cor dos tecidos; e os tecidos prolongam os corpos no espaço e no tempo.

Na história coreográfica de Paulo Ribeiro estão inscritas muitas peças de suor das quais Lídia se afasta. As expectativas de emoção e frenesim serão frustradas nesta obra cuja força reside na coesão de três dimensões: a visual, pela iluminação de Meira que fez uma excelente construção de espaço; a musical, interpretada pela Metropolitana de Lisboa; e a corporal, onde está a direcção aglutinadora de Ribeiro. Às bailarinas falta agarrar com mais certeza e apropriação o desafio que, embora exigente, não justifica as hesitações visíveis. Há muito que não surgia uma peça nova só de mulheres - é preciso celebrá-la, assumir essa responsabilidade e dar-lhe a precisão e a energia que merece.

 

 

 

 

 

 

 

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