Muito barulho por (relativamente) pouco

As recentes peripécias editoriais vêm perturbar a leitura da obra de Herberto Helder, mas dificilmente justificam que a crítica ao autor de A Morte Sem Mestre se tenha tornado uma espécie de moda viral.

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Há menos de dois meses, o consenso em torno de Herberto Helder era quase total. Reconhecido há muito como um dos poetas maiores da língua portuguesa de todos os tempos, era ainda admirado pela coerência exemplar com que se mantinha afastado dos mecanismos promocionais da cena literária, recusando prémios, entrevistas, sessões de autógrafos. Depois saiu A Morte Sem Mestre, com a chancela da Porto Editora, livro que provocou uma espécie de escândalo mediático, alimentando acaloradas discussões na imprensa e nas redes sociais.

Tendo em conta tudo o que se escreveu há apenas um ano a pretexto do lançamento de Servidões, é impressionante verificar como um tão firme consenso pôde esboroar-se quase de um dia para o outro. De repente, não se abria um jornal nem se dava uma vista de olhos pelo Facebook que não surgisse alguém a sugerir, de forma mais ou menos expressa, que o autor se rendera ao mercado e que a sua relutância em aparecer publicamente era afinal uma esperta e hipócrita estratégia promocional. Criticar Herberto Helder parece ter-se tornado uma espécie de moda viral. Previsivelmente, alguns dos que se permitiam ironizar com a alegada venalidade do poeta eram autores que usam e abusam das redes sociais para sua própria promoção, exortando os seus milhares de amigos virtuais a comparecerem na sessão onde irão intervir, ou alertando-os para alguma elogiosa recensão que lhes pudesse ter escapado. 

Antes de mais, e para colocar as coisas nas suas devidas proporções, talvez valha a pena observar que não irá decorrer assim tanto tempo até que as circunstâncias que rodearam a edição de A Morte Sem Mestre, e que tanta irritação e decepção estão agora a causar, sejam assunto de eventuais biógrafos e de leitores especializados. Uma evidência da qual o próprio autor estará decerto consciente. O livro, como os anteriores, será integrado em Ofício Cantante, (título actual da obra reunida), e é curioso notar que as recentes edições da poesia completa nunca provocaram corridas às livrarias nem especulações desvairadas no mercado alfarrabista. Não parece improvável, de resto, que uma parte dos que se queixam de não ter conseguido comprar Servidões ou A Morte Sem Mestre tenha lido pouco ou nada do que Herberto escreveu antes de A Faca Não Corta o Fogo

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Nada disto diminui a legitimidade e a pertinência de questionar o modo como o seu último livro foi editado, das criticáveis opções gráficas e incúrias de revisão a uma distribuição que terá conseguido fazer salivar os coleccionadores de raridades, mas que decerto não serviu os efectivos leitores de Herberto Helder, aos quais, por exemplo, dificilmente ocorreria que poderiam ter comprado o livro no Continente. 

Ainda mais relevante é discutir de que modo este aparato mercantil joga com a obra de Herberto Helder e com a figura de autor que esta projecta, que nem é o cidadão nem é exactamente o autor que assina os livros. E parece evidente que não joga. Como parece óbvio que a edição de Servidões em livro digital é contraditória com o princípio herbertiano de não permitir reedições. Uma opção agora censurada como sendo um modo hábil de produzir raridades bibliográficas e de alimentar a aura, mas à qual não será alheio o facto de estarmos perante um reescritor, que constantemente refaz o seu “poema contínuo”, desactualizando e desautonomizando os seus livros singulares. 

É claro que o mais provável é que não tenha sido este o motivo pelo qual Herberto Helder não reeditou os primeiros livros, como é provável que aos 20 e tal anos não imaginasse que iria passar décadas sem aparecer em público, como é provável que aos 80 não adivinhasse ainda que aos 83 iria finalmente abrir mão de algum controlo sobre a edição e a circulação da sua obra. As vidas são processos. E é de admitir, por exemplo, que o corpo que a sua poesia foi configurando, um corpo impossível, dotado de uma sumptuosa vitalidade sexual, de poderes demiúrgicos, e até de dimensões claramente sobre-humanas, possa ter contribuído para o relativo desaparecimento público do corpo do cidadão Herberto Helder. 

As recentes peripécias editoriais, mesmo que não queiramos exagerar a sua importância, vêm certamente perturbar a leitura da obra. Mas ignorando-se as circunstâncias biográficas que levaram o autor a sair da Assírio & Alvim para passar a ser editado directamente pela Porto Editora, seria prudente, e justo, não começar já a transformar em calculista ávido de fama e proveito um homem que não só recusou o prémio Pessoa, como pediu que nem sequer se divulgasse que lho tinham querido atribuir.

Em bom rigor, mesmo a Porto Editora poderá estar a ser criticada com demasiada severidade. Promoveu o livro como a empresa industrial que é, e não, claro, como a editora de poesia que nunca foi. Herberto poderá ter tido muitos motivos para lhes confiar a sua obra, mas parece altamente improvável que não soubesse ao que ia. 

Entre censuras ao ridículo rateio de exemplares e palpites variados (incluindo os meus) sobre o grau de responsabilidade que o autor terá tido no modo como o livro foi editado, do que se tem falado menos é dos poemas que o compõem e do que estes podem ou não trazer de novo à obra de Herberto Helder. Há excepções, claro. Maria Filomena Molder, num texto que não se pretende propriamente crítico, sugere que o que Herberto Helder faz é justamente não aprender a morrer, e “mesmo quando abre as veias e deixa correr o sangue” (…) é “para que algum nome se deixe ainda agarrar, talhado entre os dedos feridos”. António Guerreiro vê nestes poemas, “escritos ‘contra’ todas as regras da bienséance” e “disposições humanistas”, a emergência de um “poeta-energúmeno”, um irmão de Sade e Bataille, “solitário, singular e sem família poética”, que “concebe a poesia como uma forma aguda do Mal”. Pedro Mexia lê no livro, que considera “um prolongamento temático deServidões”, “mais do que um manual da morte”, uma “celebração de Eros”.

Outra excepção é a crítica assinada pelo poeta e jornalista Diogo Vaz Pinto, que diz frontalmente o que pensa do livro, sustentando o seu juízo com numerosas citações. E a sua opinião é que “sua eminência, o supremo bardo, depois de um magnífico ressurgimento ao fim de oito anos de silêncio com A Faca não Corta o Fogo” e de “um acto de bravura tauromáquica frente à Grande Besta com Servidões”, “vem agora fazer a fita de ‘burro velho’ e distribuir pelas moscas uns últimos coices já sem pujança.” Compara depois o poeta a uma “diva a quem subiram uns calores senis, não se decidindo a deixar o palco sem uns ajustes de conta finais”, censura “o tom, mais que queixoso, lamuriento” do livro, diz dele que deixa “a clara sensação de que não tem lugar no grande ‘ministério lírico’ do autor”, e aconselha a que se leia “a poesia que precedeu isto”, o seu “poema contínuo”. 

Este texto incomodou-me por duas razões. Antes de mais, passagens como a da diva ultrapassam a fronteira que separa o estilo mordaz da ofensa deliberada. Algo que — e nisso poucos me acompanharão — nem acho necessariamente reprovável. Mas se me sentisse tentado a ofender um poeta de 80 anos, o mero juízo negativo que pudesse fazer da obra não seria motivo suficiente, e ainda menos o seriam quaisquer fragilidades imputáveis ao envelhecimento biológico do autor. Tendo em conta que Vaz Pinto não poupa elogios ao que Herberto Helder escreveu até A Morte Sem Mestre, seria de esperar que fosse um pouco mais magnânimo. Afinal, os poetas que atingem picos de criatividade aos 83 anos não são propriamente a regra. E antes de ironizar com as queixas de um octogenário (e de passar em claro o que nelas há de uma irada ironia), talvez fosse prudente esperar por lá chegar e ver como é. 

A segunda coisa que me incomodou não corresponde a uma irritação, mas a uma perplexidade. Vaz Pinto é autor de um dos livros de estreia que mais admiro na poesia portuguesa contemporânea, Nervo, e é um leitor de poesia informadíssimo. Custa-me a crer que possa não se aperceber de que alguns dos poemas de A Morte Sem Mestre, na sua capacidade de invenção verbal, na sua singularidade, na espantosa imaginação que exigem, por muito autobiográficos que possam ser — e estou a pensar, por exemplo, em “meus veros filhos em que mudei a carne aflita” ou em “folhas soltas, cadernos, livros, montões inexplicáveis (…)” —, não estão provavelmente ao alcance das sinapses de nenhum outro poeta português vivo. O que não quer dizer que outros não escrevam poemas igualmente bons, mas apenas que não dispõem destas precisas qualidades no mesmo grau. Na verdade, talvez só delas tenha disposto, na poesia portuguesa da segunda metade do século XX, o Mário Cesariny do final dos anos 50, o do Manual de Prestidigitação e de Pena Capital.

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