Mravinsky, colossal!

Uma interpretação avassaladora, nos píncaros da discografia chostakovichiana.

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Este disco traz-nos um raríssimo testemunho do maestro Evgueny Mravinsky dirigindo Scriabin, no caso uma interpretação de incrível sensualidade do Poema do Êxtase DR

Evgueny Mravrinsky (1903-1988) foi sem dúvida um dos maiores maestros do século XX. Poucos tiveram como ele um tal domínio da orquestra (em concreto sobre a “sua” Orquestra Filarmónica de Leninegrado, de que foi director desde 1938 até à morte) e em particular um tão apurado e fluido domínio dos tempos e das dinâmicas. Especialmente saliente foi a sua relação com Dimitri Chostakovich entre 1937 e 1962. Foi ele que dirigiu as estreias das Sinfonias nº 5, nº6, nº 8 (que lhe é dedicada), nº9, nº10 e nº12; contudo, a recusa do maestro em dirigir a Sinfonia nº13, Baby Yar, denúncia do anti-semitismo com textos do poeta Evgueni Yevtushenko — permitida durante o breve período dito do “degelo” sob a liderança de Khrutchov, e depois banida —, motivou a ruptura entre os dois e Mravinsky, além dessa, não viria também nunca a dirigir as derradeiras Sinfonias nº 14 e nº15.

Composta em 1943, em plena “grande guerra patriótica” contra os nazis, sucedendo à famosa Sinfonia nº7, Leninegrado, a nº8 suscitou perplexidades. Embora as autoridades soviéticas, para a legitimarem no contexto do esforço de guerra, lhe tenham brevemente designado de Estalinegrado (o que era de todo abusivo), a obra está longe de ser triunfal, e de resto viria a ser objecto de condenação, e banida, quando, em 1948, sob a égide de Jdanov, é formulada contra Chostakovich, Prokofiev e outros a acusação de “formalismo” É certo que ecos de conflito são audíveis nos andamentos nº2, Allegreto, uma marcha, e nº3, Allegro non troppo, mas mesmo em relação a esse nº3, se aparenta ser um quadro de batalha (e nesse sentido podendo ser referida ao contexto da guerra), outro dos mais destacados intérpretes de Chostakovich, o maestro Kurt Sanderling, antes via nele a expressão do “esmagamento da individualidade” pelo sistema soviético. A Sinfonia nº8 conclui-se portanto por uma prolongada interrogação.

O próprio Chostakovich viria posteriormente a considerá-la como um requiem e o seu amigo Isaak Galamian tinha-a como “a sua obra mais trágica”, carácter que logo se afirma no imenso primeiro andamento (quase 25 minutos), Adagio, e se reitera nos dois últimos, Largo e Allegretto-Adagio-Andante. É uma obra de dimensão considerável, cerca de uma hora — só a Leninegrado é mais longa — e entre todas as sinfonias do autor é, sem dúvida alguma, aquela em que mais está patente o influxo neo-beethoviano. Há justificadas razões para a considerar uma das maiores sinfonias de Chostakovich, com as nº4, nº10 e nº14, como também de a considerar em concreto a mais pungente e mais directamente expressiva.

Mravinski deixou vários testemunhos em disco desta sinfonia, logo desde 1947, o último em 1982 (que houve disponível na Philips, e que hoje se encontra nas etiquetas Altus ou Regis). Este último é em geral o mais citado, mas não pode ser de maneira nenhuma desconsiderada a interpretação de 1961, a do presente disco, que vem no entanto levantar uma dúvida: o registo é sempre referido como tendo sido captado em concerto em Lenigrado, o presente disco refere antes Moscovo. Como os testemunhos são em tudo idênticos, fica a dúvida sobre se houve antes um erro de atribuição, se isso eventualmente sucederá agora ou se são mesmo duas gravações distintas.

Seja como for, é uma interpretação avassaladora, nos píncaros da discografia, ousemos mesmo dizer que um dos máximos registos chostakovichianos, A densidade trágica e a tensão são contínuas e o controlo orquestral, do conjunto e das diversas intervenções solistas, magistral.

Mas como se não fosse bastante esta esmagadora e prodigiosa interpretação da Sinfonia nº 8 de Chostakovich, o presente disco, numa duração extremamente generosa de quase 80 minutos, traz-nos ainda uma coplagem sensacional, um raríssimo testemunho de Mravinsky dirigindo Scriabin, no caso uma interpretação de incrível sensualidade do Poema do Êxtase, com uma mutabilidade de tempos e um detalhe tímbrico verdadeiramente de excepção.

Enfim, a remasterização digital, ao contrário de tantas outras, se não mesmo da maioria, está longe de uma frieza lisa e mantém o calor intenso da sonoridade orquestral analógica. De facto, este é um disco verdadeiramente colossal!

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