Morreu Manoel de Barros, o poeta brasileiro que arejava a linguagem

O autor de Livro Sobre Nada morreu na quinta-feira aos 97 anos em Campo Grande, no estado de Mato Grosso ?do Sul, onde vivia. Carlos Drummond de Andrade chamou-lhe o “poeta maior” do Brasil.

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Manoel Bandeira dr

Manoel de Barros, a quem Carlos Drummond de Andrade chamou o “poeta maior” do Brasil, morreu esta quinta-feira em Campo Grande, no estado brasileiro de Mato Grosso do Sul, a cerca de um mês de completar 98 anos. Considerado o Guimarães Rosa da poesia pela reinvenção sintáctica e semântica a que submeteu a língua, Manoel de Barros deixa cerca de três dezenas de títulos, de Poemas Concebidos Sem Pecado (1937) a Portas de Pedro Viana (2013), publicado 76 anos após o seu livro de estreia.

A par da poesia, escreveu livros para crianças e uma obra autobiográfica em vários volumes a que chamou, sintomaticamente, Memórias Inventadas.  “Só tive infância, só sei escrever sobre a infância, mas é uma memória inventada”, dirá o próprio.

O poeta estava internado no hospital Proncor, em Campo Grande, há duas semanas e fora recentemente submetido a uma cirurgia ao intestino, mas as causas exactas da morte não foram adiantadas.

Advogado de formação, fez-se fazendeiro quando herdou a propriedade paterna, mas o seu verdadeiro ofício foi desde cedo a escrita. Reconhecido com alguns dos mais importantes prémios literários brasileiros, era também bastante lido em Portugal, onde foi editado pela extinta Quasi e pela Caminho, a chancela da LeYa que editou a sua poesia completa em 2010.

No obituário que lhe dedica o jornal O Globo, lembra-se a resposta que dá, no documentário Só dez por cento é mentira (2008), quando o realizador Pedro Cezar lhe pergunta como gostaria de ser lembrado: “A gente nasce, cresce, amadurece, envelhece, morre. Para não morrer, tem que amarrar o tempo no poste. Eis a ciência da poesia: amarrar o tempo no poste”.

Em 2013, já com 97 anos, ainda escreveu um último poema, A Turma, mas há largos meses que já não conseguia escrever e estava fisicamente muito diminuído, confinado à casa e aos cuidados da sua mulher, Stella, com quem se casou em 1947. A morte do seu filho Pedro em Agosto de 2013, com um AVC, cinco anos depois de ter perdido outro filho num desastre de aviação, tinha-lhe tirado a vontade de viver. A sua filha Martha, a única que lhe sobreviveu, explicou que, com a velhice e o desgosto, o pai “estava se apagando como uma velinha”.

Manoelês archaico

Manoel de Barros nasceu em Cuiabá, Mato Grosso, filho de um capataz de fazenda, mas foi viver ainda criança para a capital do estado de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, onde frequentou um colégio interno. Terminou os estudos liceiais no Rio de Janeiro, onde se formou depois em Direito.  Enquanto estudante universitário, adere à organização juvenil do Partido Comunista Brasileiro (PCB).

Tinha 18 anos quando a polícia o foi procurar à pensão onde vivia, no Rio, porque soubera que fora ele que pichara numa estátua a frase “Viva o comunismo!”. A dona da pensão intercedeu pelo seu jovem inquilino, garantindo que era bom rapaz e que até escrevera um livro, chamado Nossa Senhora de Minha Escuridão. O agente, para sorte e azar de Manoel de Barros, tinha sensibilidade literária. Sorte porque não o prendeu, azar porque lhe ficou com o único original do livro, que nunca mais apareceu. Sabe-se apenas que não era de poesia.

Ele próprio conta que escreveu o seu primeiro poema aos 19 anos, e tinha 21 quando publicou, em 1937, o seu livro de estreia, Poemas Concebidos Sem Pecado. “Publicou” por assim dizer, já que esta primeira edição se resumia a 21 exemplares impressos artesanalmente por um amigo.

Tendo rompido com o PCB quando Luís Carlos Prestes declara o seu apoio ao então presidente Getúlio Vargas, Barros vive algum tempo na Bolívia e no Peru e passa um ano em Nova Iorque, onde frequenta um curso de cinema e pintura. Ainda antes de regressar ao Brasil, faz uma viagem à Europa, visitando então Portugal.

Após a morte do pai, herda uma fazenda e, nos anos 60, instala-se definitivamente em Campo Grande, dividindo-se entre a criação de gado e a poesia. Em 1942, publicara Face Imóvel, onde a influência do primeiro modernismo brasileiro, ainda muito visível no seu livro de estreia, parecia esbater-se em favor de uma voz altamente singular, que assumia a região do pantanal como matéria prima, inventando simultaneamente uma linguagem capaz de tornar palpável, de dar textura e cheiro, ao que era abstracto. Mas esse “idiolecto manoelês archaico”, como lhe chamaria mais tarde, manteve sempre pontes com as vanguardas brasileiras dos anos 20, e em particular com o poeta paulista Oswaldo de Andrade e o seu Manifesto Antropofágico, que reivindicava uma língua literária “não catequizada”.

A língua de Barros é também devedora de João Guimarães Rosa, como o é das suas precoces leituras de Rimbaud, e é ela que verdadeiramente o distingue. “Não sou um poeta da paisagem, nem um poeta ecológico ou folclórico, sou um poeta da palavra – o meu pantanal é inventado –, mas poucas pessoas entendem isso”, diz o autor ao cineasta Pedro Cezar no documentário Só Dez por Cento É Mentira, cujo título recupera o final de uma frase sua que se tornou célebre: “Noventa por cento do que escrevo é invenção, só dez por cento é mentira”.

Minhocas e poetas

Há uma dimensão franciscana na poesia de Manoel de Barros, na qual o homem não se sobrepõe a uma cobra, ou a um sapo, ou a uma planta. Mas essa atenção à natureza – e atenção é a palavra certa – não resulta numa poesia naturalista ou descritiva. Não basta andar pelos campos de olhos abertos para se perceber que “quando chove nos braços de uma formiga/ o horizonte diminui”, como escreve num poema.

Essa poesia da palavra que é ao mesmo tempo, como disse Antônio Houaiss, um dos seus primeiros divulgadores, uma “humildade diante das coisas” afirma-se em Compêndio para Uso dos Pássaros (1960), com as suas peculiaridades gramaticais e onomatopeias, ou no ainda mais inventivo e surrealizante Gramática Expositiva do Chão (1966), um título que resume bem o programa poético de Manoel de Barros e que, não por acaso, veio a servir para baptizar, em 1990, a primeira edição conjunta da sua poesia.

Mas se Manoel de Barros chegou provavelmente a ser o mais popular poeta brasileiro vivo, pelos finais dos anos 60, quando já publicara alguns dos seus livros essenciais – e até ganhara prémios – continuava a ser, no essencial, um ilustre desconhecido. Também nunca foi de frequentar os meios literários e, até ao final da vida, nunca gostou de dar entrevistas.

É só na década de 80, com a ajuda de divulgadores como o colunista e humorista Millôr Fernandes, e com a atribuição, em 1987, do prestigiado prémio Jabuti a O Guardador de Águas que Manoel de Barros adquire visibilidade nacional. Também o lançamento do filme Caramujo-flor (1989), de Joel Pizzini, uma espécie de ensaio visual inspirado na vida e obra de Manoel de Barros, e em particular no livro Gramática Expositiva do Chão, contribuiu para este reconhecimento um tanto tardio do poeta.

Recebeu em 1998 o Prêmio Nacional de Literatura do Ministério da Cultura brasileiro pelo conjunto da obra, e voltou a ganhar em 2002 o prémio Jabuti, desta vez na categoria de ficção, com O Fazedor de Amanheceres. Em 2012, foi distinguido com o prémio literário Casa da América Latina, para autores latino-americanos vivos com obra publicada em Portugal. Já não pôde viajar, mas a sua filha Martha deslocou-se a Lisboa para receber o galardão. E o poeta fez questão de agradecer com um poema inédito que o PÚBLICO então divulgou.

Traduzido em espanhol, francês, inglês e alemão, o autor de Arranjos para Assobio (1980) e Livro Sobre Nada (1996) foi em diferentes anos o poeta brasileiro com mais livros vendidos no seu país. O segredo da sua arte, o que Manoel de Barros fazia, resumiu-o ele admiravelmente numa passagem de Livro de Pré-coisas (1985): “Minhocas arejam a terra, poetas a linguagem”.


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