Manuel de Lucena, homem livre e cientista político heterodoxo

Foi um pensador político original que mudou o nosso olhar sobre a natureza do salazarismo. O seu percurso tem muitas estações e viragens, desde a greve académica de 1962. Com um fio comum: a liberdade.

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O primeiro livro de Manuel de Lucena influenciou decisivamente os estudos sobre o Estado Novo Enric Vives-Rubio

Morreu neste sábado Manuel de Lucena, no dia em que fazia 77 anos. É difícil dizer quem foi e o que nos lega. O seu percurso tem muitas estações. Foi um pensador original e heterodoxo, um espírito livre e criativo, um contador de histórias, um apaixonado tradutor, um militante de muitas causas e viragens — um homem do seu tempo. Era investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS) desde 1975.

Cientista político, mudou radicalmente o modo de olhar o Estado Novo com o seu primeiro livro — A evolução do sistema corporativo português. Vol. I: o Salazarismo; vol. II: o Marcelismo — uma tese escrita no exílio e publicada em Portugal em 1976.

Numa entrevista ao PÚBLICO, em 2013, fez um irónico auto-retrato: “Eu acho que só há uma coisa que eu faço mesmo bem: é traduzir. (…) E dificilmente me penso como outra coisa qualquer. Não sou estúpido, de vez em quando penso umas coisas que não são mal pensadas, mas não tenho um pensamento vasto e universal capaz de acolher os principais aspectos da nossa querida existência.”

A questão é que são muitíssimas essas “coisas não mal pensadas”.

Primeiro percurso
Manuel João Maya de Lucena nasceu em Lisboa em 1938. Passou a infância em Angola, onde fez a instrução primária. Frequentou o liceu em Lisboa e depois um colégio de Jesuítas. Entrou na Universidade através do Instituto Superior Técnico, que logo trocou pela Faculdade de Direito. De raiz católica e monárquica, militou na Juventude Universitária Católica (JUC). O primeiro círculo de amigos é de católicos “empenhados”: Carlos Portas, Manuel Belchior, João Vieira de Castro, Francisco Sarsfield Cabral, Paulo Rocha. No CCC (cineclube católico) fez outros, como João Bénard da Costa, Nuno de Bragança ou Pedro Tamen — que voltará a acompanhar na revista O Tempo e o Modo, fundada em 1963 por António Alçada Baptista.

Lucena já tinha feito a ruptura com o salazarismo quando eclode a greve académica de 1962. É a oportunidade de uma “estreia literária”: é ele quem redige a quase totalidade dos comunicados da greve. Acompanha os seus amigos dirigentes das RIA (reuniões inter-associações) — Jorge Sampaio, Eurico Figueiredo, Medeiros Ferreira, Victor Wengorovius ou António Ribeiro. Depressa se inicia na arte da política: tinha uma forma peculiar de combinar o rigor dos princípios com o gosto da manobra táctica.

Segue-se a época da radicalização. “Esquerdizei abundantemente”, disse na mesma entrevista. Em 1963, deserta e parte para o exílio em Roma, com sua primeira mulher, Laura Larcher Graça. É dirigente do Movimento de Acção Revolucionária (MAR) e, em Argel, fará parte da Frente Patriótica de Libertação Nacional. Terá uma breve colaboração com a LUAR. Em 1970, participa com António Barreto, Eurico Figueiredo, Carlos Almeida e Medeiros Ferreira na fundação da revista Polémica, publicada em Genebra. Passado da Itália para Paris, estuda no Institut de Sciences Sociales du Travail onde faz a tese sobre o corporativismo.

Neste percurso há uma constante: nunca foi atraído pelo Partido Comunista.

O pós-25 de Abril
O revolucionário Lucena muda de agulha. Chega no Verão de 1974. Depressa diz aos amigos de que não gosta do que vê. Conclui o serviço militar em Cabo Verde, participando no processo de descolonização. É outro momento de viragem. Apoia o manifesto do Grupo dos 9, de Melo Antunes. Adere depois à Aliança Democrática, de Sá Carneiro, e faz a campanha do seu candidato presidencial, general Soares Carneiro. Já nas presidenciais de 1996 apoiará Jorge Sampaio contra Cavaco Silva.

No livro de homenagem que lhe foi dedicado em 2013 — Estado, Regime e Revoluções, Estudos de Homenagem a Manuel de Lucena — os organizadores (Carlos Gaspar, Fátima Patriarca e Luís Salgado de Matos) resumem a lógica deste segundo percurso: “A acção política de Manuel de Lucena tem sido sobretudo escrita, cultivando em regra uma independência política e intelectual que o levou a tomar posição, como comentador, contra os perigos da escalada comunista, o caos da descolonização e os obstáculos à institucionalização de uma democracia pluralista. Nos anos 70 do século XX, antes e depois do 25 de Abril, escreveu artigos ainda inspirados por um socialismo radical; mas, ao longo das duas décadas seguintes, procurou, nomeadamente, nos jornais dirigidos por Víctor da Cunha Rego – o Diário de Notícias, a Tarde e o Semanário –, definir uma linha singular, tão radical na defesa da transição para essa democracia pluralista, como inteligente na procura dos argumentos que podem pesar na balança ideológica a favor da liberdade.”

O seu trabalho académico manteve o eixo de sempre: corporativismos, fascismos, totalitarismos, o processo revolucionário português, a descolonização ou a Constituição de 1976. No Dicionário de História de Portugal (coordenado por António Barreto e Maria Filomena Mónica) assina entradas sobre Salazar e as principais figuras do Estado Novo. Publica em 2006 o seu último livro: Contradanças: política e arredores.

Um dos seus grandes projectos foi a realização de entrevistas exaustivas a cerca de 50 actores da descolonização, de todas as áreas e correntes, civis e militares. Coordenou, com investigadores e jornalistas, esse trabalho entre 1995 e 1998. O resultado — 1500 páginas — pode ser consultado: está disponível no site do ICS.

Palavras
Cultor de um português inconfundível, adorava traduzir. Diz na introdução à sua tradução das Moradas, publicada em 1989: “Ao escrever as Moradas, Santa Teresa de Ávila tentou traduzir Deus, trazendo-o, na medida do possível, para o alcance das suas irmãs e filhas, as carmelitas descalças. Pela minha parte, acabo agora de traduzir essa tradução. O objecto do seu labor, na medida em que de objecto seja lícito falar, foi a própria divindade ou o que dela directamente experimentou. O do meu, palavras.”

Puro Lucena. Por entre as muitas viagens e viragens, de 1962 a 2015, soube permanecer sempre o mesmo homem — o inconfundível Manuel de Lucena. Académico, passou sempre ao lado das honrarias e do carreirismo.

P.S: O corpo estará na Basílica da Estrela a partir das 17 horas deste domingo. Na segunda-feira haverá missa às 16h00, seguindo-se o funeral para o Alto de São João.

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