B.B. King, o rosto popular dos blues

Morreu quinta-feira o músico que fez dos blues uma música global. Nascido no Mississípi, B.B. King dedicou a vida a reinventar a tradição com a ajuda de uma guitarra eléctrica chamada Lucille.

B.B. King em palco em 2009, no festival de jazz de Montreux
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B.B. King morreu aos 89 anos em Las Vegas FABRICE COFFRINI/AFP
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Concerto durante a Expo 1998, em Lisboa Dulce Fernandes
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B.B. King em concerto no Coliseu de Lisboa em Março de 1996 Daniel Rocha
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B.B. King em concerto no Coliseu de Lisboa em Março de 1996 Daniel Rocha
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Concerto no Festival Jazz de Montreux em 2011 FABRICE COFFRINI/AFP
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B.B. King em Portugal em Junho de 1995 Luís Vasconcelos
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King actuou em Sabrosa a 29 de Maio de 2010 Nelson Garrido
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O concerto de Sabrosa teve entrada gratuita Nelson Garrido
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O músico actuou para as tropas norte-americanas na Bósnia no Verão de 1996 Laszlo Balogh/REUTERS
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Uma das "Lucille", as suas Gibson negras com que tocava FABRICE COFFRINI/AFP
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King era presença assídua no Festival de Jazz de Montreux FABRICE COFFRINI/AFP
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A música de B.B. King era transversal a vários públicos FABRICE COFFRINI/AFP
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A lenda dos blues actuou até 2014 FABRICE COFFRINI/AFP

Riley Ben King não era tão bom quanto o seu primo a apanhar algodão. Era miúdo, em idade de escola, mas passava muitas vezes os dias numa quinta algures no delta do Mississípi dedicado a esse trabalho duro que começava cedo. Uma boa jornada significava que os tios se mantinham calmos. A sua ambição futura era então moldada pela ideia de que talvez um dia pudesse vir a conquistar a sua pequena porção de terra que trabalharia montado num tractor, voltando a casa para uma mulher bela e para os filhos que tivesse trazido ao mundo. Não parecia fadado para grandes voos. Nem sequer no algodão.

Os horizontes dessa quinta idealizada foram-se estreitando à medida que os seus bolsos e dos amigos, com o passar dos anos, continuavam quase vazios; ao mesmo tempo que, em sentido contrário, os relatos da música que vinham de uma Memphis que parecia imensamente distante começavam a soar mais promissores. B.B. King fez a sua parte ao mudar-se para a cidade; o destino, que já o marcara com um nome de realeza, tratou de lhe mostrar o caminho para o estúdio de Sam Phillips. Se era de bênção que ia à procura, não poderia ter calhado em melhores mãos. Phillips era o fundador dos Sun Studios e da mítica Sun Records, por onde passaram Elvis Presley, Johnny Cash, Howlin’ Wolf e tantos outros fazedores da alma musical norte-americana. Sintomaticamente, logo na década de 50, o talento daquele jovem músico que começara por tocar guitarra com grupos de gospel, não escaparia aos ouvidos de Phillips. Dificilmente se adivinharia, ainda assim, que ali estava um dos músicos que faria história ao transportar a linguagem original acústica dos blues para a expressão eléctrica.

Falecido aos 89 anos, em Las Vegas, na noite de quinta-feira, B.B. King foi provavelmente o maior responsável pela popularização dos blues. Vivendo com diabetes tipo II desde a década de 80, foram as complicações decorrentes da doença a vitimá-lo. As reacções de pesar rapidamente se avolumaram nas redes sociais nas horas a seguir à sua morte, vindo de todos os quadrantes. De Ringo Starr a Snoop Dogg, de Bryan Adams ao vocalista dos Kiss Gene Simmon. Eric Clapton, assumido seguidor de King, afirmara ao Los Angeles Times, em 2005, que “B.B. toca em algo universal; não pode ser confinado a um único género.” É naturalmente impensável desviar B.B. King dos blues, tendo sido uma das suas figuras maiores e das raras a conquistar uma dimensão global, mas é um facto que a sua linguagem, ao tomar-se de electricidade, acabaria por colher ensinamentos no jazz de Charlie Christian, nas big bands de Count Basie, numa ampla galeria de bluesmen que ele ampliaria através de uma linguagem apelidada "Memphis Blues" – que partilhava com a génese do rock’n’roll uma sonoridade mais inflamada e intensa.

Memphis seria igualmente o berço da formação de B.B. King, cujas iniciais haviam de ser repescadas na sua designação de DJ na rádio – Blues Boy. Primeiro, através de uma lição de humildade: “Achava que era realmente bom. Mas quando cheguei a Memphis e fui ao Handy Park – na altura chamava-se Beale Street Park – e ouvi aquelas pessoas, era como se houvesse uma universidade nas ruas! E descobri então que não cantava assim tão bem”, recordou em entrevista ao site Academy of Achievement. “Via gente na rua a dançar e eu nem sequer sabia andar.” Depois, teve as suas únicas lições a sério, encomendando, comprando e estudando obsessivamente manuais de guitarra numa loja local.

Parecendo um pormenor, não o é. A curiosidade e a vontade de explorar a guitarra faria de B.B. King não um mero perpetuador de uma música que lhe tinha sido legada pela região do Mississípi, mas um instigador de novos caminhos. Concentrando em si boa parte da tradição musical negra, montada em torno dos blues, B.B. King falava de Frank Sinatra, Nat King Cole, Bach e Beethoven como lendas a cujo patamar sonhava chegar. “A minha única ambição é ser um dos grandes cantores de blues e ser reconhecido”, disse King ao jornalista musical Michael Lydon, citado agora pelo Washington Post. Na mesma publicação, o historiador de blues Peter Guralnick não lhe nega esse estatuto na História: “Tem o mesmo lugar nos blues que Louis Armstrong tinha no jazz. É um embaixador para a música.”

O canto de Lucille

Mais do que a sua colecção de 15 Grammy, mais até do que os milhões de discos que terá vendido em todo o mundo, B.B King deu um rosto popular aos blues. Para uns quantos, Howlin’ Wolf, Muddy Waters ou Robert Johnson serão nomes mais emblemáticos desta música. Mas mais ainda do que Buddy Guy ou John Lee Hooker, B.B. King alcançou um reconhecimento muito para além da sua origem musical, tendo trabalhado ao longo da carreira com alguns dos nomes mais importantes do rock como Eric Clapton, George Harrison, Rolling Stones, David Gilmour, U2 ou Joe Cocker. Em parte, como nota o crítico do New York Times Jon Pareles, pela sua infatigável vida na estrada, tocando por todo o mundo em toda as oportunidades que se lhe apresentassem – em Portugal, foram várias ocasiões, a primeira em 1973, tendo chegado a partilhar o palco com Rui Veloso. Era habitual fazer anos com mais de 250 concertos.

Irreconhecível era também, para Pareles, a forma como a guitarra cantava nas suas mãos. Em cada solo, o vibrato único extraído por B.B. King aproximava o fraseado do canto, fazendo com que os blues de King não se parecessem a nenhuns outros. A guitarra, essa, é igualmente do domínio do conhecimento geral, tendo sido baptizada como Lucille – desde que uma certa noite, um baile da vila de Twist, no estado do Arkansas, dois homens começaram a lutar e, acidentalmente, incendiaram o recinto. No meio da confusão, reza a história, o músico correu para salvar a sua guitarra. A partir de então, essa guitarra e as suas sucessoras, sempre da marca Gibson, passaram a partilhar o nome com a mulher que dera origem à luta entre os dois homens.

O diálogo com Lucille passou a imagem de marca, sobretudo na forma como B.B. King sempre quis separar as melodias que cantava daquelas que desenhava com as mãos. “Por vezes, sinto que há mais coisas que precisam de ser ditas, para que o público perceba melhor aquilo que estou a tentar fazer”, afirmou à Associated Press em 2006. “Quando canto, não quero que oiçam apenas a melodia. Quero que revivam a história, porque a maioria das canções tem óptimas histórias.”

A riqueza de um som

Basta recuar até ao histórico álbum Live at the Regal, gravado na sala de Chicago em 1964, para se perceber sem dificuldade a inovação nos blues orquestrada por B.B. King. Apresentado como “King of the Blues” (o cognome que se lhe colou à pele durante mais de metade da vida), o músico ataca um conjunto de temas em que o canto de Lucille carrega já a expressividade intensa que lhe conhecemos até ao fim – e a que Lenny Kravitz justamente se referiu, no Twitter, com a mensagem de despedida “BB, qualquer pessoa podia tocar mil notas e nunca dizer o que dizias com uma só”. O som, impressionante no tema de abertura, “Every Day I Have the Blues”, era cheio, com secção de sopros, guitarras, baixo, bateria e piano, longe da versão descarnada dos clássicos do Mississípi. Esse som sugeria uma imagem, a da fuga: a riqueza, a opulência sonora, queria ver-se o mais longe possível da pobreza que rodeara B.B. King (e tantos outros heróis dos blues) durante a sua infância e a sua adolescência.

Daí que, respeitando uma tradição dos blues como forma de revolta cantada – quantas lamuriosas canções de amor não eram encapotadas queixas da situação laboral dos bluesmen? –, a música nunca tivesse sido apenas a sua expressão mais evidente. “Ser um cantor de blues é como ser negro duas vezes”, escreveu King na sua autobiografia Blues All Around Me, citada pela agência Reuters. “Quando o movimento dos direitos civis estava a lutar pelo respeito pelos negros, senti que estava a lutar pelo respeito pelos blues.” Em Abril de 1968, poucos dias depois do assassinato de Martin Luther King (em Memphis), B.B. King tocaria numa noite de improvisação com Buddy Guy, Al Kooper, Janis Joplin e Jimi Hendrix. A revolução levada a cabo por Hendrix teria também em B.B. King um dos municiadores principais, tendo sido uma das primeiras e assumidas fontes de inspiração do guitarrista. Little Richard, com quem Hendrix tocou durante alguns meses, recorda a Rolling Stone, havia mesmo de queixar-se que o jovem músico soava exageradamente a King.

Nesse mesmo ano de 68, o New York Times registaria aquele que, para o músico, seria o primeiro indício claro de que B.B. King passara a ser um nome de peso na cultura popular. Em São Francisco, na conhecida sala de rock Fillmore West, o jornal testemunhava a chegada ao sucesso de King descrevendo a fila à porta em que havia “brancos de cabelos compridos” e a subida ao palco com o anúncio de que chegara a hora de receber “o presidente do conselho de administração B.B. King”. “Toda a gente se levantou e eu chorei. Foi o princípio”, disse King numa entrevista televisiva em 2003. Nessa altura, já se tinha dado a transição que o levava de facto a um público cada vez mais alargado e não circunscrito aos blues: a primeira de muitas actuações no Festival de Jazz de Montreux, em 1968, presenças no festival de folk de Newport e em Monterrey em 1967 (onde dividia cartaz com Jimi Hendrix e Otis Redding). No ano seguinte, havia de abrir os concertos dos Rolling Stones.

Nascido na mais típica das histórias de vida dos músicos de blues, com uma infância marcada pela extrema pobreza na apanha do algodão, o percurso de B.B. King é a superação absoluta de quaisquer clichés. Não apenas se libertou dessa condição como criou um estilo próprio, seguido por uma multidão.  Mas, para ele, os blues eram tanto o caminho que já tinha percorrido como aquele que tinha pela frente.


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