Morreu a ficcionista Nadine Gordimer, Nobel da Literatura em 1991

Escritora sul-africana tinha 90 anos e deixa uma vasta obra ficcional que retrata criticamente o regime do appartheid, mas que também olha sem concessões para a nova África do Sul.

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Nadine Gordiner fotografada em 2009, no Festival de Literatura de Berlim Berthold Stadler/AFP

A escritora sul-africana Nadine Gordimer (1923-2014), prémio Nobel da Literatura em 1991 e uma das mais influentes vozes contra a segregação durante o regime do appartheid, morreu no domingo aos 90 anos. Um comunicado da família informa que a autora “morreu pacificamente” na sua casa de Joanesburgo, na presença dos seus filhos Oriane e Hugo.

Gordimer publicou dezenas de romances e livros de contos, muitos deles retratando a África do Sul durante o regime do appartheid. Em 1974, venceu o Booker Prize com The Conservationist (O Conservador, Asa), protagonizado pelo anti-herói Mehring, um sul-africano branco e rico que vai beneficiando dos privilégios que o regime lhe confere enquanto se debate com o crescente sentimento de que a sua vida carece de verdadeiro sentido.

Nadine Gordimer estreou-se como contista ainda nos anos 40 e publicou o seu primeiro romance, The Lying Days, em 1953. Quando recebeu o Nobel da Literatura, a Academia Sueca justificou a escolha afirmando que a “magnífica escrita épica” da romancista sul-africana trouxera “um grande benefício para a Humanidade”, uma expressão utilizada pelo próprio Alfred Nobel.

Nascida a 20 de Novembro de 1923 em Springs, uma cidade mineira dos arredores de Joanesburgo, Gordimer era filha de um fabricante de relógios letão e de uma inglesa de origem judaica. Foi educada numa escola católica e chegou a frequentar durante um ano a Universidade de Witwaterstrand, que viria a atribuir-lhe, em 1984, um doutoramento honorário em Literatura pela sua “enorme contribuição para a literatura e para a transformação da África do Sul”.

Testemunhando desde cedo a repressão do regime sul-africano – ainda adolescente, viu a polícia invadir a casa paterna para confiscar cartas e outros documentos do quarto de um criado –, a obra de Nadine Gordimer viria quase toda ela a lidar com questões éticas e morais, e em particular com o fenómeno do racismo.

Tinha 15 anos quando publicou no suplemento juvenil de um jornal, em 1937, o seu primeiro conto. O seu livro de estreia, Face to Face, um volume de contos, saiu em 1949.

Amiga de Mandela

Aos trinta anos, publicou o primeiro de 15 romances, The Lying Days, um livro com uma forte componente autobiográfica, cuja acção decorre na sua cidade natal, Springs, e que narra o modo como uma jovem branca confrontada com a injustiça da divisão racial vai adquirindo uma consciência política.

Gordimer é autora de mais de vinte volumes de histórias breves, mas é mais conhecida pelos seus romances, que incluem títulos como A Guest of Honour (1970), que ganhou o prémio James Tait Black, da Universidade de Edimburgo, o já referido O Conservador (1974), July’s People (A Gente de July, Teorema), de 1981, no qual Gordimer imagina uma sangrenta revolução da maioria negra do país contra a minoria branca no poder, ou o mais recente The Pickup (O Engate, Texto Editora), de 2005, que trata temas como o desenraizamento, a emigração, as diferenças de classe e a fé religiosa através de um casal formado por uma mulher branca de uma família abastada e um árabe que vive ilegalmente na África do Sul. Quando o homem é obrigado a regressar ao seu país, a mulher acompanha-o e é ela que então experimenta o sentimento de se ser uma estranha em terra e cultura alheias.

Vários dos seus livros foram proibidos na África do Sul, como o seu segundo romance, A World of Strangers (Um Mundo de Estranhos, Difel), de 1958, ou Burger’s Daughter (A Filha de Burger, Asa), de 1979. A Gente de July, com as suas descrições de sul-africanos brancos perseguidos e assassinados por revoltosos negros, conseguiu mesmo ser banido do ensino já depois da queda do apartheid.

Gordimer aderiu ao Congresso Nacional Africano (ANC) quando a organização era ainda ilegal e, embora tenha sido sempre uma militante crítica, via no ANC a melhor esperança para derrubar o apartheid. A sua actividade cívica e política levou-a a travar conhecimento com os advogados de Nelson Mandela, e colaborou mesmo na redacção do discurso de defesa que o futuro presidente da África do Sul apresentou em tribunal em 1962, intitulado Estou Preparado para Morrer. Mandela leu mais tarde a A Filha de Burguer na prisão e, quando foi libertado, em Fevereiro de 1990, pediu para conhecer a autora. Ficaram amigos e enquanto Mandela foi vivo mantiveram contactos regulares.

Gordimer participou regularmente em manifestações contra o racismo e a repressão na África do Sul e aproveitou a notoriedade que os seus livros lhe trouxeram para denunciar sistematicamente o regime junto da opinião pública internacional.

Coragem pessoal

Após o derrube do apartheid, a autora empenhou-se muito particularmente na luta contra a sida, o que a levou a criticar a política do presidente Thabo Mbeki, sucessor de Mandela, por quem sempre mostrara pública admiração.

Na sua repulsa pela discriminação, Gordimer não fazia excepções. Chegou mesmo a recusar, em 1998, integrar os finalistas do prémio Orange, porque este é exclusivamente destinado a escritoras.

O seu percurso político situa-a claramente à esquerda, mas nunca permitiu que inclinações ideológicas e simpatias partidárias condicionassem a sua liberdade de pensamento. Muitos dos que gostaram de a ver co-assinar, com outros prémios Nobel, uma carta aberta pedindo aos Estados Unidos que não se aproveitassem da doença de Fidel Castro para tentar desestabilizar o regime comunista cubano, ter-se-ão provavelmente irritado com as suas críticas aos que procuravam fazer equivaler o sionismo ao apartheid. Críticas que não a impediram de exortar a sua amiga Susan Sontag, em 2001, a não aceitar o Prémio Jerusalém, atribuído pelo governo israelita.

A sua coragem pessoal também não esmoreceu com os anos. Se desde a sua juventude combateu o regime do apartheid e, mesmo nos anos de repressão mais dura, nunca considerou abandonar o país, parece ter mantido até ao fim essa recusa de ceder ao medo. Em 2006, era já octogenária, foi assaltada em casa: roubaram-lhe do dedo a aliança de casamento e fecharam-na na despensa. A notícia do incidente causou grande comoção no país e Gordimer foi aconselhada a mudar-se para um condomínio fechado e protegido. Não só recusou, como defendeu a necessidade de se atacar as origens da criminalidade, lembrando que “há jovens na pobreza, sem oportunidades, e que precisam de educação, formação e emprego”.

Se há muito poucas traduções portuguesas dos contos de Gordimer, e também dos seus ensaios, a sua obra romanesca está quase integralmente traduzida. Além dos títulos já referidos, tiveram edição portuguesa The Late Bourgeois World (O Fim dos Anos Burgueses, Difel), de 1966, A Sport of Nature (Um Capricho da Natureza, D. Quixote), de 1987, My Son’s Story (A História do Meu Filho, Presença), de 1990, None to Accompany Me (Ninguém me Seguirá, Difel), de 1994, e Get a Life (Faz-te à Vida!, Texto Editora), de 2005.

Após sete anos sem publicar nenhum novo romance, a escritora ressurgiu em 2012 com No Time Like the Present, um livro que olha sem concessões para a experiência democrática da África do Sul pós-apartheid. Uma das personagens do livro é, talvez sintomaticamente, um branco que começa a contemplar a hipótese de se mudar com a família para a Austrália.

A escritora deixa uma filha, Oriane, do seu primeiro e breve casamento com o dentista Gerald Gavron, e um filho, Hugo Cassirer, cineasta radicado em Nova Iorque, do seu segundo casamento, em 1954, com o negociante de arte Reinhold Cassirer (1908-2001), responsável pelo estabelecimento da leiloeira Sotheby’s na África do Sul.

 

Notícia alterada às 13h40 para corrigir a idade que Nadime Gordimer tinha quando publicou o seu primeiro romance.

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