Mísia no Trindade, um aniversário feliz

A celebração em palco dos 25 anos de fados e canções de Mísia, no lisboeta Teatro da Trindade, na noite de 2 de Dezembro, foi um momento feliz: de entrega, emoção e profissionalismo. Não é todos os dias que se “sopram velas” assim.

Fotogaleria
Bolo de aniversário projectado na tela do palco, no início do concerto C. B. ARAGÃO
Fotogaleria
Mísia fotografada para a capa do disco duplo agora editado C. B. ARAGÃO
Fotogaleria
Capa do disco-colectânea Do Primeiro Fado Ao Último Tango C. B. ARAGÃO

Por um singelo mas divertido momento, o espectáculo parecia ter acabado antes mesmo de começar. Mísia e os músicos, vestidos de preto, surgiram juntos no palco, acercaram-se da ribalta em vénias, a responder aos muitos aplausos, pessoas várias entregavam flores e num repente o pano caiu. Podia ter sido gag: o fim antes do princípio. Mas era o princípio numa lógica invertida, porque a música começou depois. E começou com a força de Amália, Tive um coração, perdi-o, música de Fontes Rocha e Mísia a mostrar, ainda a frio, uma voz bem calorosa perante a muito composta sala do Teatro da Trindade, na noite de 2 de Dezembro.

O fio condutor do concerto, com um som de sala excelente e uma iluminação que cumpriu sem desviar atenções do essencial, fluiu com natural dinâmica e as falas de Mísia, sempre que as houve, denotaram sabedoria e elegância. E agora estava ela num dueto real com Amélia Muge, autora do belíssimo Amália sempre e agora; depois num dueto virtual com Iggy Pop, voz gravada a pedido de Mísia para a Chanson d’Héléne, que ela disse ser mais triste que o mais triste dos fados; e depois na “estrada comprida” de Rasto de infinito, que Tiago Torres da Silva escreveu tão à medida dela que não se a imagina noutra voz.

Estávamos ainda no princípio e já Mísia baralhava os caminhos, da fatalidade ao gozo e depois à sorte, trazendo ao palco dois Melech Mechaya para a acompanharem no Cha Cha Cha em Lisboa, de Artur Ribeiro e Ferrer Trindade, partindo de seguida para a pungência do Fado Menor de O Manto da Rainha, que ela própria escreveu, desaguando por fim no fado que, no disco-colectânea Do Primeiro Fado Ao Último Tango, foi escolhido para início: Fado Adivinha II, com letra de José Saramago e música de Mário Pacheco. Tudo isto sem quebras, numa gestão inteligente do canto e dos tempos, uma lição para muitos. Naranjo en Flor, dos irmãos Virgilio e Homero Expósito, foi pretexto para Mísia falar da Argentina, nos laços que por lá criou, e para dar uma notícia: Giosefine, a peça onde ela é protagonista, baseada num conto de António Tabucchi, estreada em Buenos Aires com encenação de Guillermo Heras, terá estreia em Portugal, em Abril de 2017. Notícia dada, foi a vez de outra evocação: Vasco Graça Moura. Primeiro com Fogo preso (música de Fontes Rocha), depois com Presságios de Alfama, baseado na música de Carlos Paredes para o disco Canto, de 2003 – que, outra notícia, dada ali por Mísia, vai ser reeditado.

E assim se tinham passado dez canções, sem que déssemos pelo tempo, fechando-se as cortinas para um curto intervalo. A segunda parte trouxe, logo a abrir, dois temas de João Monge: Duas luas (no Fado Magala) e Paixões diagonais (no Fado Miguel), que Mísia gravou no disco homónimo com Maria João Pires ao piano. E um inesperado percalço: a letra de Ainda que (Drummond musicado por Amélia Muge) desaparecera, e Mísia não a quis cantar para não falhar. Foi pena, ainda que… não houvesse melhor saída. Mas como um poeta chama outro, ouviu-se Não me chamem pelo nome, de António Botto, na marcha José António Amaral. Unicórnio, do cubano Sílvio Rodriguez, adaptado para português por Luís Represas, soou límpido e quase lírico, deixando-se arranhar, minutos depois, pelas muito lúcidas Garras dos sentidos, poema de Agustina Bessa-Luís no Fado Menor. Para o final ficaram as contribuições de cantores contemporâneos. Primeiro Vitorino, com Ciúmes de um coração operário e Veste de noite este quarto (este com um poema de António Lobo Antunes), depois Sérgio Godinho, com o ainda hoje inovador Liberdades poéticas.

Por essa altura, já Mísia apresentara os músicos: para além de um sólido e criativo trio de fado (com José Manuel Neto na guitarra portuguesa, André Ramos na viola e Daniel Pinto no baixo), Ricardo Dias no piano e acordeão, Luís Cunha no violino e, como convidado, vindo de Nápoles para participar no concerto, o maestro e pianista Fabrizio Romano. Aliás, não foi só ele. Mísia teve oportunidade de agradecer a vários “misianos” (como ela lhes chama) vindos de várias partes do país ou até da Europa para estarem ali. Alguns até foram ao palco para, cantando, lhe oferecerem mais flores. Longe de ser ridículo, foi sóbrio e até comovente. Nem mesmo a dona Viridiana, com mais de 90 anos, faltou ao concerto – e lá estava ela, satisfeita, na plateia, respondendo às amigáveis saudações da cantora. Isto é o universo de Mísia, um universo tão nobre quanto heterodoxamente estranho, mas movido pelo amor à música, ao canto e à arte. E à poesia, e ao fado, e ao risco, coisas a que ela não virou nunca as costas.

E se começou com Amália, que elogiou pela imortal modernidade, Mísia voltaria a ela nos dois “encores”. Primeiro, com a belíssima copla que Carlos Cano escreveu para essa grande senhora do fado e da canção universal, Maria la portuguesa, onde Mísia tocou castanholas para honrar parte da sua ascendência (“Não vai ser perfeito, mas vai ser lindo”, disse, e foi), depois a pungente Lágrima, escrita pela própria Amália com música de Carlos Gonçalves, pretexto para um discurso sobre amores e desamores, mas acima de tudo sobre o valor da aprendizagem que nos dá a vida. Dos 40 temas do disco comemorativo Do Primeiro Fado Ao Último Tango, excelente mostra daquilo de que Mísia é capaz, ouviu-se metade. Mas de uma forma que raramente um disco consegue dar: com a vigorosa presença de uma voz, de um corpo, de uma intenção, de um pensamento. Como Mísia canta, em Rasto de infinito: “Em cada vela/ Em cada vela há um grito/ Onde um rasto de infinito/ Fica de noite a arder/ Eu sou a chama/ Sou a chama dessa vela/ E só sei que dentro dela/ Ninguém se atreva a morrer”. Um elogio à vida, à poesia e ao fado.

Sugerir correcção
Comentar