Miró, o artista que nos convidou a ver tudo como se fosse a primeira vez

Tem sido referência constante nos media nas últimas semanas por causa de um banco nacionalizado e de uma colecção de arte que fez as malas sem autorização e viajou para Londres, à procura de outros donos. Mas, afinal, quem é Joan Miró? O que é que trouxe de novo ao século XX? O PÚBLICO pediu a três especialistas que respondessem a esta e a outras perguntas.

Foto
Miró era sobretudo um pintor de estúdio - gostava de trabalhar sozinho e em silêncio DR/Exposição "La metáfora del Color", Buenos Aires

Era um homem baixo de cabelo curto, traços comuns e uns olhos pequenos, muito vivos. Na maioria das fotografias e filmes aparece impecavelmente vestido, mas de forma algo conservadora. Se é apanhado pelas câmaras a trabalhar, é natural que esteja de bata ou em mangas de camisa; se surge no meio de um grupo de artistas e poetas, no começo do século XX, quando se transformou num dos inventores das vanguardas, chega a parecer um pouco deslocado, estranhamente convencional.

Desmond Morris, o zoólogo britânico e pintor surrealista que chegou a conhecê-lo, lembra num breve depoimento dos arquivos da Tate Modern, o importante museu londrino de arte moderna e contemporânea, que, quando viu Joan Miró pela primeira vez, o artista catalão lhe pareceu um banqueiro ou um diplomata espanhol, até mesmo um chefe de Estado: “Era extremamente reservado e educado, cortês. O oposto das suas pinturas.”

Estávamos em 1964 e Morris, que expusera com Miró em 1950, guiava-o numa visita ao jardim zoológico de Londres, deliciando-se com o encantamento permanente do artista - “os seus olhos eram como os de uma criança que vê uma coisa que a entusiasma” -, em particular perante um camaleão e o trabalho de Congo, um chimpanzé de três anos que, graças a um projecto do zoólogo, se dedicava à pintura.

Joan Miró (1893-1983) era, diz quem o conheceu e sobre ele escreveu, na sua maioria artistas, poetas, críticos e historiadores de arte, um homem singular. Diz a sua obra, que essa singularidade se estendia, sobretudo, a tudo o que criava, deixando uma marca inconfundível na arte do século XX.

Nas últimas semanas muito se tem dito, e escrito, sobre este artista que se deixou encantar por Paris mas nunca esqueceu a sua Catalunha, a propósito da colecção de 85 pinturas, desenhos e colagens que dele guardava o Banco Português de Negócios (BPN), que foi nacionalizado. Acusações de ilegalidades na expedição das obras para Londres, onde deveriam ter sido leiloadas pela Christie’s, providências cautelares a correr no Tribunal Administrativo de Lisboa, movimentos cívicos, petições e intensas manobras da oposição para garantir que este acervo privado que nunca esteve exposto em Portugal e muito poucos tiveram oportunidade de ver quando estava ainda nas mãos do BPN de Oliveira e Costa, não volta a deixar o país.

Mas, afinal, quem é Joan Miró? O que é que trouxe de novo ao século XX? Porque é que identificamos à partida as suas obras, capazes de seduzir audiências de origens e gerações tão diversas? Ouvimos três especialistas responderem a estas e a outras perguntas, usando muitas vezes as palavras poesia e liberdade.

Um grande artista e é só
Para Rosario Peiró, chefe do departamento de colecções do Museu Nacional Rainha Sofia, Joan Miró não é apenas um dos maiores artistas do século XX, é também um dos inventores das vanguardas, um homem que compreendeu e representou como nenhum outro a relação entre a pintura e a poesia. “Nos anos 20, em Paris, Miró dava-se mais com poetas do que com pintores e sempre se sentiu bem no meio deles”, lembra a conservadora, que não se cansa de comparar a sua importância à do mestre de Málaga, Pablo Picasso (1881-1973).

Entre ambos há grandes diferenças, explica Peiró, que começam na personalidade de cada um: “Picasso criou um personagem para lá do artista, era dado ao convívio social, gostava de se misturar com as pessoas, de conversar, de dar entrevistas. Miró era o oposto - era um homem do silêncio, extremamente discreto, um artista de estúdio avesso a jornalistas, que dispensava festas e atenções, mesmo quando o seu trabalho era já muito disputado. Em Miró é quase sempre a obra que fala.”

Uma obra que, ao contrário da de Picasso, não era declaradamente politizada, embora fossem evidentes as suas posições perante a Guerra Civil de Espanha (apoiou a causa republicana contra Franco) ou a independência da Catalunha. “É claro que, para os catalães, a liberdade artística está ligada à liberdade de expressão”, dizia.

Peiró e João Fernandes, o curador português que foi director artístico do Museu de Arte Contemporânea de Serralves e hoje é director-adjunto do Rainha Sofia, em Madrid, um dos maiores museus de arte moderna e contemporânea da Europa, defendem que Miró nunca recusou partilhar as suas opiniões políticas, nomeadamente as que o afastavam da ditadura militar franquista. “Toda a arte é política e a de Miró, que tão crítico foi em relação à Espanha dos anos 1930, não é excepção”, diz a primeira. “Nunca deixou de aceitar os convites da História para intervir política e civicamente”, acrescenta o segundo. E se o fazia de forma mais discreta era porque era esse o seu modo de ser.

O que lhe interessava, verdadeiramente, era explorar as possibilidades da arte, testar os seus limites, cruzá-la com a literatura e o teatro, criar uma nova maneira de dizer e de fazer. Projecto ambicioso para o filho de um relojoeiro transformado em empresário de relativo sucesso que o queria formado em Comércio e que não viu com bons olhos a sua partida para uma estadia inicial em Paris, em 1920, depois de cumprido o serviço militar, depois de ter já recebido formação em arte, de ter visto a sua primeira exposição cubista, de ter lido a poesia de Appolinaire e conhecido o pintor e poeta Francis Picabia.

É em Paris, a onde chega praticamente sem dinheiro - a mãe dá-lhe apenas o mínimo que precisa para se instalar e é por isso que dirá mais tarde que, nos primeiros tempos, não tinha sequer como comprar um croissant e que “a fome era boa para ter ideias” - que vai conhecer alguns dos maiores nomes da arte e da literatura do século passado, bem como as suas obras, ocupando o seu lugar num universo cheio de “istas”: cubistas, modernistas, abstraccionistas, surrealistas, dadaístas... Max Ernst, Picasso, Henri Matisse, Georges Braque, Paul Klee, Raoul Dufy, André Breton, Paul Eluard, entre muitos outros.

“O cubismo abriu muitas portas mas, depois do cubismo, a pintura tornou-se muito estática”, diz Joan Miró numa das suas raras entrevistas, no final dos nos 1970. “Estava só preocupada com a plasticidade e eu queria saltar em frente. (...) Com o surrealismo encontrei o que estava à procura.”

Embora seja ao surrealismo que o público em geral o associa, Rosario Peiró defende que não faz qualquer sentido chamar a Miró outra coisa que não “um grande artista”. As categorizações passaram de moda, garante, e o autor de obras como O Carnaval de Arlequim (1924-25), Cão a ladrar à lua (1926), Corda e Pessoas I (1935) ou Mulher perante o sol (1950) é impossível de classificar: “A sua produção é tão grande e diversificada que não faz sentido fechá-lo em caixas. Em cada década, Miró tem alguma coisa nova para mostrar porque está sempre disposto a experimentar cores, suportes, formas… Ele está sempre à procura de uma liberdade na expressão, na pintura, na poética, no processo.”

João Fernandes concorda. Afinal, é o director-adjunto do museu espanhol que explica por que razão Miró merece uma “categoria” só sua: “Ele pertence ao grupo de artistas que, no início do século XX, fizeram tudo para explorar novas possibilidades para a pintura. Não pode ficar aprisionado num só termo porque ele fundou algo que é só seu, fora do que até aí tinha sido toda a experiência pictórica.”

Reiventar o mundo
O resultado das longas décadas da sua carreira, explicam os dois curadores, é um corpo de trabalhos de extraordinária diversidade e coerência, muito ancorado na escrita e nos seus mecanismos. Miró transporta para a sua arte a “mecânica da escrita, criando estruturas poéticas visuais”: “As suas figuras, mulheres, estrelas, pássaros são como letras, fazem parte de um alfabeto que ele vai construindo até ao fim.”

E é com este alfabeto, acrescenta Fernandes, que o artista catalão “reinventa uma representação do mundo”, com linhas muito simples, convidando-nos a ver tudo como se fosse a primeira vez.

E se é verdade que recorre a algumas técnicas que vêm do surrealismo e a um “imaginário que vai para além da representação do onírico” que é familiar a este movimento, também é verdade que dele se afasta para construir o seu próprio universo, “radicalmente pessoal”. Um universo que, segundo Peiró, é “lírico” e “lúdico”, e que, apesar de criado sem qualquer “intenção de prazer”, pode tornar-se “absolutamente sedutor”, tanto para crianças como para críticos exigentes.

António Olaio, artista, professor e Director do Colégio das Artes da Universidade de Coimbra, fala num Miró “enternecedor” e “fácil de amar”, autor de uma obra em que não se sente descontinuidade alguma, próxima do surrealismo no processo, mas não no resultado.

“Se há uma sensação de cliché no efeito de recepção da obra de Miró, isso resulta de quem vê - o artista não tem culpa”, explica. “Na sua obra lemos as abstracções como personagens. O seu universo onírico é amável e suave, como o de Chagall. Talvez por isso a pintura de Miró seja capaz de desencadear um encantamento epidérmico”, acrescenta, recusando filiá-lo em movimentos ou dizer se o catalão é, ou não, um dos mais influentes artistas do século XX: “A questão da influência não é importante, nem a da catalogação. Se é bom vê-lo numa perspectiva surrealista não é para lhe encontrar uma família, mas para perceber até que ponto é diferente, até que ponto subverte as expectativas que o surrealismo criou para si mesmo.”

Diz ainda Olaio que Miró “desfoca” o surrealismo do seu jogo de símbolos e da sua ligação tradicional com a psicanálise. “É por isso, em parte, que a sua obra é imediatamente reconhecível. Todos os artistas interessantes são eles próprios um movimento.”

Miró não gostava de falar nem de ser o centro das atenções. Para tal atitude terá contribuído a sua natureza reservada e, talvez, os primeiros tempos de Paris, em que se tornava muitas vezes alvo de chacota no grupo dos surrealistas por causa da sua timidez e dos seus modos conservadores e “burgueses”. É dessa altura o célebre episódio em que Max Ernst, seu colega de atelier, e outros artistas quase o enforcaram para que se pronunciasse sobre um tema qualquer. Miró teve medo de morrer, contaria mais tarde um dos seus amigos, o escritor Michel Leiris, mas permaneceu em silêncio. Para ele, parece dizer a cada nova obra, as palavras importantes eram as que fazia chegar às suas pinturas, desenhos, esculturas, composições e colagens.

Para falar do seu trabalho, a Miró bastava mostrá-lo. Foi o que fez numa manhã de Julho, em 1966, quando recebeu na cidadezinha de St. Paul de Vence, no sul de França, um músico de jazz que andava em digressão. Miró levou-o a ver as suas esculturas, dizendo apenas uma ou outra palavra, em catalão ou francês; o músico, nada mais nada menos do que “Duke” Ellington, sorria-lhe e respondia em inglês. Nenhum deles percebia o que o outro dizia, mas isso não teve qualquer importância. Quando a lenda do jazz se juntou ao seu trio e tocou para o anfitrião, Miró encostou-se ao plinto de uma das suas obras e começou a dançar discretamente. Vê-lo seguir a música é delicioso, e provavelmente muito mais eficaz, do que ouvi-lo falar sobre ela.

Sugerir correcção
Comentar