Miguel Real deu uma lição de felicidade a alunos da Lourinhã

Ao segundo dia do Livros a Oeste, Miguel Real falou do Bem e do Mal, das telenovelas e de José Mourinho. Cerca de 200 alunos do secundário escutaram-no também dizer como a sua mãe foi feliz sem nada ter feito para isso.

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Miguel Real com os alunos da Escola Secundária Dr. João Manuel da Costa Delgado DR

Uma sala ampla foi-se enchendo para a sessão com Miguel Real, autor de Nova Teoria do Mal e de Nova Teoria da Felicidade. Mais alunos que cadeiras obrigaram a que alguns jovens se sentassem no chão e outros se instalassem como puderam no corredor. Cenário: Escola Secundária Dr. João Manuel da Costa Delgado, na Lourinhã. Pretexto: Festival Livros a Oeste, que decorre naquela cidade até 9 de Maio.

O primeiro desafio foi lançado por João Morales, organizador do encontro, porque a timidez dos alunos impediu-os de interpelar o escritor neste início de conversa. Pedia-lhe o jornalista que explicasse o que é o Mal, à luz da sua nova teoria.

“O Mal nem é uma contingência”, diz Miguel Real (e clarifica o sentido de contingência – “aconteceu mas podia não ter acontecido”), “o Mal não é uma opção (só para as mentes perversas), o Mal é uma necessidade”.

Para melhor se fazer entender, o ex-professor começa a desenhar um esquema no quadro branco, onde regista o período do séc. I ao XIX e as dicotomias, “tomadas como absolutas”, Mal/Bem e Diabo/Deus. “O homem navegava à deriva entre o Bem que queria fazer e o Mal para que era tentado.” Ao Mal fez corresponder, no esquema, o Inferno e ao Bem, o Paraíso.

Há alunos bastante atentos ao que é dito, outros nem tanto. Alguns já estão no 12.º ano, vão seguir Ciências e não têm a disciplina de Filosofia, mas interessam-se pelo tema. Como Valentina Henriques, que disse ao PÚBLICO, no final da sessão: “A diferença entre o pensamento da Antiguidade e o de hoje interessa-me bastante, gosto de pensar sobre o equilíbrio entre o que se faz e aquilo em que se acredita.”

Esta foi uma das alunas que acabariam por ter coragem de questionar o escritor a meio da apresentação. Mas, por agora, continuemos a lição. “A partir do séc. XIX (Nietzsche e outros), o homem já vive entre o bom e o mau”, prossegue Miguel Real, que ressalva “‘bom’ e ‘mau’ escritos com letra pequena”. Aqui já se trata de actos que “dependem do contexto ou das circunstâncias”.

Um homem bom pode praticar um acto mau. Exemplificando: “Ao ver um homem bater numa criança, o homem bom descontrola-se e bate no outro homem.” No campo oposto, um homem mau pode praticar um acto bom. “Um criminoso torna-se dócil perante a criança acabada de nascer.”

Estamos a falar de absolutismo ou de relativismo? “Relativismo”, diz Henrique, sentado no chão no meio da sala. Será também este aluno que mais adiante se lembrará do nome do deus romano da deficiência física, Vulcano, e irá merecer um aplauso de toda a audiência. No final, dirá ao autor: “Sou um aluno mediano, mas gosto muito de Filosofia.”

Para concluir, Miguel Real define quatro fontes do mal e dá alguns exemplos: carências (“pobreza, falta de água, de alimentos”), dor física (“ataque de coração”), dor psicológica (“amargura, depressão”) e morte.

“A morte é a última fonte do mal. Aqui não há relativismos”, diz e lembra: “Não conseguimos vencer a morte, mas conseguimos atirá-la para mais tarde. Já se fala em quarta idade: dos 80 anos aos 95/100).”

O escritor invoca como “fontes do Mal” no cristianismo a “carne (sexualidade) e o mundo, no sentido de sociedade (poder, fama, dinheiro)”, e lembra o Papa Francisco na sua frase: “Idolatrar o deus do cifrão.” Para Miguel Real, “a carne como fonte do Mal deixou de fazer sentido na religião”. E lembra-se das telenovelas: “São os programas mais vistos e há 12 telenovelas [a passar actualmente]. Ali, aprende-se a beijar, namorar, apalpar.” Risos cúmplices entre os jovens. “Mas também a conquistar a fama e a olhar a actividade política como fonte de poder, poder, poder!”

João Morales pede agora a Miguel Real que discorra sobre a sua nova teoria da felicidade. Apaga o quadro e começa a desenhar novo esquema à medida que vai explicando, sempre com grande empatia com a audiência: “O Mal é o conceito eticamente mais negativo. Como não tenho a garantia de que o Bem existe, a felicidade será nós e o mundo estarmos onde queremos. Estarmos bem, nós e os outros.”

E, inesperadamente, o autor começa a falar da mãe: “Nunca desejou nada que não pudesse ter. Escrevi o livro a pensar na minha mãe. Ela foi feliz e nunca fez nada na vida para isso. Viveu aquilo a que Horácio chamava aurea mediocritas (normalidade dourada). E morreu feliz.”

Esta normalidade dourada é, segundo o autor, “o 1.º grau de felicidade”. O 2.º grau já implica criação (“criar algo a partir de si, uma empresa, arranjar uma quinta, escrever um livro e uma obra de arte, fundar uma sociedade recreativa, organizar uma equipa desportiva”), é uma “felicidade mais genuína e mais poderosa”.

Diz aos jovens que, se quiserem ser bancários, o 1.º grau de felicidade lhes está garantido. “Contas pagas, férias no Algarve e colégio para os filhos.” Risos.

Já para o 3.º e mais elevado grau de felicidade explica: “É preciso acrescentar à criação de uma obra o júbilo de ficar para a história, como José Saramago.” Pede então que sugiram outros nomes de portugueses com idêntico grau de felicidade noutras áreas. “José Mourinho e Cristiano Ronaldo”, ouve-se em vários pontos da sala. Miguel Real concorda, mas sublinha: “Independentemente das opiniões, goste-se deles ou não, ficam para a história. Daqui a 30 anos, como hoje falamos do Eusébio, falaremos de Cristiano Ronaldo.”

Outro exemplo do desporto, de um ciclista da região (Torres Vedras): Joaquim Agostinho. “Ainda está ali num cartaz. Joaquim Agostinho viveu mais intensamente do que a minha mãe.” Mas o escritor quer deixar bem claro: “Não confundir a felicidade na criação da obra com a fama, o poder, o dinheiro.” E não quer deixar de falar de um outro português importante na área da neurobiologia, do Instituto Champalimaud: Rui Costa. “Ele está a transformar o cérebro num computador e o computador num cérebro. Mesmo que nunca tenham ouvido falar dele, é certo que a cada passo da sua investigação ele alcançará o 3.º nível de felicidade.”

Para terminar, fala ainda de António Damásio, depois de uma aluna, Cristina, o  questionar sobre o lugar do corpo e da alma. Sugere que procurem no Google a palavra “consciência” em vez de “alma” e que não deixem de ler até ao final do ano Consciência de Si, daquele cientista. “Leiam António Damásio, leiam António Damásio.” A campainha toca e há uma grande salva de palmas.

Nesta quinta-feira, Livros a Oeste prossegue com uma conversa de João Morales com Sérgio Godinho, Tiago Salazar e Afonso Reis Cabral, às 21h30. Três estreias felizes na ficção.

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