Memórias coloniais imperfeitas

A mais recente literatura portuguesa sobre África ilumina os refugiados da história, invertendo o sentido da história dos regressos.

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Em Maputo, os heróis do colonialismo desapareceram do espaço público depois da independência Ricardo Achiles Rangel

Para José Luandino Vieira

Os acontecimentos que dominaram a história de África e da Ásia pós-Segunda Guerra Mundial ligam-se às movimentações sociais e políticas que deram origem aos processos de libertação e guerras pela independência. Os movimentos anti-coloniais manifestavam-se contra a subalternização numa altura em que as questões de identidade e nacionalidade preocupavam, por razões diversas, os europeus e as nações colonizadas.

Movendo os africanos das margens para o centro das narrativas e fazendo do seu território o seu núcleo identitário, os movimentos anti-coloniais foram inscrevendo, pela mão dos seus escritores, a diferença cultural que, a prazo, iria reclamar a independência política. A história da intervenção colonial passava a ser contada a partir de um outro lugar, denunciando a imoralidade da sua condição e desafiando o “perigo de uma história única” sobre a gesta colonial, de que fala a escritora nigeriana Chimamanda Adichie Ngozi. Estes textos foram, na sua origem, plataformas para um diálogo, mas na ordem colonial vigente rapidamente se tornaram objecto de censura e motivaram a perseguição dos seus autores. Mas estas narrativas foram também objecto de leitura para a comunidade colonial e metropolitana, gerando assim caminhos de grande ambiguidade identitária, transformando identidades pessoais e nacionais e colocando desta forma sob suspeita a aparente hegemonia cultural gerada pelo colonialismo.

A falta de diálogo e o impasse político radicalizaram posições, conduzindo a cenários de guerra, como aconteceu com Portugal e as suas antigas colónias entre 1961-1974. Para os países africanos esta foi a guerra libertadora, fundadora da narrativa da nação independente. Para os portugueses foi uma guerra inconfessada e inconfessável. Aos discursos africanos enaltecedores da luta, opõem-se os discursos de perda e disforia que povoam as narrativas portuguesas desta guerra. Uma história comum, mas de memórias diferentes, como lembra Mia Couto na crónica “A derradeira morte da estátua de Mouzinho”, num momento que encena o fim de um tempo em Moçambique, “Há um mundo que termina, um luto que não é meu mas que me ensombra o peito. … Porque nenhuma morte nos é alheia, mesmo a do insuficiente inimigo.” (Cronicando, 1991). 

Hoje, à distância de 40 anos das descolonizações é possível pensar sobre o tempo que demorou à sociedade portuguesa negociar o que se deveria esquecer e o que se deveria recordar – da ditadura, de África, da Guerra Colonial – para, sobre um pacto de esquecimento e recordação, inventar uma democracia no tempo prescrito de eleições e outros processos que compõem o corpo social e político dos sistemas democráticos ocidentais.

Memória, silêncio, trauma, mas também exaltação, imaginação e novidade são alguns dos pressupostos sobre os quais se ergueu a democracia portuguesa, nascida de uma revolução imaginada como pacífica, esquecendo assim todo o sangue de África nela contida. África era o seu elemento perturbador, pois nela tropeçávamos a cada passo, ora sob a forma dos ex-combatentes, ora de retornados, ora de negociações diplomáticas que cada dia nos comprometiam com a rota europeia e nos desresponsabilizavam de África. Numa espécie de contra-discurso, a ficção do pós-25 de Abril ia mostrando a importância da memória como um elemento fundamental na construção da democracia. De Cardoso Pires, Lobo Antunes, Lídia Jorge, José Saramago, Maria Velho da Costa, Helder Macedo, João de Melo, Carlos Vale Ferraz até aos mais jovens Paulo Bandeira Faria, Isabela Figueiredo, Rodrigo Guedes de Carvalho, Norberto Vale Cardoso ou Dulce Cardoso as dores da ditadura, o império, a guerra e as suas heranças são temas. Pelas análises que empreendem do Portugal contemporâneo, intrinsecamente ligado à memória da ditadura que se prolonga nos nossos gestos, pensamentos e políticas, e pela leitura política que fazem do que foi o colonialismo em África, estas obras questionam os protocolos de esquecimento sobre os quais se fundou a nossa democracia.

Esta literatura acusa uma viragem na tomada de consciência pós-colonial do espaço antigamente colonial e das vivências aí havidas como essenciais à nossa identidade de portugueses e de europeus. Por isso, a viagem que estes livros assinalam – de Portugal para África – inverte o sentido da história de regressos, sobre a qual se foram narrando os impérios ultramarinos. A viagem europeia de hoje constitui um reconhecimento de que parte da história da Europa se passou fora da Europa. Por isso hoje para percebermos a “fractura colonial” (P. Blanchard et al.,), sob a qual todos vivemos, temos de contar a história das pertenças de muitos sujeitos às terras outrora parte do império. De outro modo, ficaremos “refugiados da história” (G. Marcus). Pense-se nas personagens de Esplendor de Portugal, de Lobo Antunes, ou na narradora de Caderno de Memórias Coloniais, de Isabel Figueiredo, que se classifica de “desterrada”, vivendo a coincidência impossível de resolver, de herdeira do sujeito colonizador: “Na terra onde nasci seria sempre a filha do colono”. A sua história individual de pertença àquela terra coincide com a história pública do colonialismo português em Moçambique.

Estes livros assumem uma espécie de culpa herdada, que não se consegue resolver em responsabilidade histórica, envolta que a memória de África hoje está também marcada, no imaginário literário português, por uma nostalgia que recupera os tópicos do “paraíso tropical”. A gestão de saudade que esta onda literária gera, traz uma novidade: para se perceber o Portugal actual tem de se empreender a viagem de retorno a África, mas não no sentido de lidar de frente com os seus fantasmas, mas de habilmente os transformar em fantasias. São obras que representam a comunidade portuguesa que se imagina a partir de um discurso luso-tropical, e que assim se subtrai a uma reflexão sobre a violência política, social e epistémica do que foi o colonialismo. São livros capazes de gerir saudade, mas não de olhar o futuro. E isso é o que mais os afasta dos livros supracitados, que por lidarem com o mais poderoso fantasma de África – o colonialismo – problematizando-o, são capazes de gerar futuro.

Um elemento emerge de todas estas ficções: o acto colonial não termina com quem o executou ou com quem o sofreu. Ele perpassa para as gerações seguintes sob a forma das figuras do ex-colonizador e do ex-colonizado que complexamente reencenam uma fantasmagoria que se identifica com o habitante íntimo do inconsciente europeu – o fantasma colonial – que quotidianamente interroga as sociedades multiculturais europeias, que não podem ser historicamente amorfas: há memórias diferentes, nesta história comum. No conto de Mia Couto, no momento da remoção da estátua de Mouzinho, o narrador olhando uma família de portugueses conclui: “a sua tristeza não é igual à minha”.

 Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra

Esta série é feita em colaboração com os participantes da conferência O Ano do Fim. O Fim do Império Colonial Português, organizada pelo ICS

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