Melancolia é a minha identidade

Romance atípico de um dos mais originais escritores argentinos

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O típico humor absurdo de Lázaro Covadlo é aqui substituído pela melancolia

O escritor argentino Lázaro Covaldo (Buenos Aires, 1937) — que por motivos políticos se mudou para Espanha em 1975 — é um dos mais originais autores de língua espanhola.

Criaturas da Noite

e

Buracos Negros

(ambos publicados por cá pela Livros de Areia) são um bom exemplo da sua mestria. Neles encontramos a original e estranha normalidade de um quotidiano desarmante, quase tocando o absurdo ou o horror, situado algures entre o real mais banal e um outro espaço que ultrapassa a dimensão do onírico. O humor absurdo com traços kafkianos, a atenção posta nos pormenores, a fina ironia, mas sobretudo o brilho narrativo e a inventividade, fazem deste autor argentino um caso sério da literatura. Dele disse Enrique Vila-Matas: “É imperativo ler Covadlo.”

Comparado com os livros acima referidos, este As Aventuras de Marina Pons é um romance atípico, ao abdicar do universo que lhe conhecíamos. Narra-nos a história de uma mulher, Marina Pons, na casa dos 40 anos, viúva de José, um stripper, um “exibicionista profissional” que conheceu ainda nos seus tempos áureos de homem musculado, mas que acabou por ficar impotente, gordo e diabético, como resultado dos muitos esteróides anabolizantes com que se injectava para manter a lisura muscular e uma silhueta desejável pelas mulheres das festas de despedida de solteira para que era contratado. Marina fora professora de Biologia, órfã criada pelo tio Hilário, que sempre controlara a sua vida e que geria um negócio de cadeiras de rodas, próteses e outro material hospitalar. Após a morte de José, que também trabalhara para o tio Hilário, Marina fica com o negócio da venda daquele material em mãos. Isso obriga-a a viajar por toda a Espanha, a pernoitar em hotéis, a conhecer vários homens. “Se é certo que desde pouco tempo depois de enviuvar estive com muitos homens e, na maior parte desses encontros, não passei mal, ninguém mais do que José, que descanse em paz, é capaz de fazer cócegas na minha imaginação e na minha memória.”

Marina Pons é uma mulher em busca de si própria, de uma identidade que a vida (por várias razões, umas fortuitas, outras familiares e sociais) nunca a deixou conhecer verdadeiramente. Se o casamento com o stripper foi o começo de uma revelação (em especial o modo como o conheceu e como conseguiu fazer-se notar), a sua morte veio abrir outras portas. Apesar de não ter carta de condução de motociclos, Marina compra uma Ducatti Monster S4R, que guarda numa garagem e que visita de vez em quando apenas para lhe alimentar os sonhos. Vasculha memórias, tenta conhecer-se. “Imagino que cada qual é como uma grande casa — umas dessas enormes mansões dos filmes de Hitchcock, como em Psico, como em Rebecca: o piso térreo, o primeiro andar, o segundo andar, o sótão, e ainda mais um sótão por cima desse. Do piso térreo descemos para a primeira cave, depois vem uma segunda e uma terceira, e ainda, sob a terceira cave, um espaço enorme e húmido povoado por toda a espécie de bichos.”

Mais ou menos a meio do livro, são introduzidos, de maneira um pouco forçada, dois ou três capítulos narrados pelo defunto stripper. Também ele se mostra de uma maneira diferente daquela que até aí tinha sido oferecida ao leitor, desvelando-se à medida que a morte se aproxima, já acamado, transformado numa “bola de gordura”, tentando ainda alguma recuperação com mais esteróides mesmo sabendo que já não tem salvação. O típico humor absurdo de Covadlo é neste romance substituído por uma melancolia (por vezes ainda disfarçada de ironia) que se arrasta com as personagens ao longo do tempo, que as acompanha mesmo quando elas procuram lutar com toda a força contra ela. A melancolia de um tempo, que de certa forma não foi vivido com plenitude, está-lhes colada à pele, e elas nada conseguem fazer contra isso. Assim como o leitor. 

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