McQueen selvagem

Savage Beauty, a exposição que celebra a obra de Alexander McQueen, é como a picada de uma aranha — não nos mata, mas é tóxica

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Um título é um programa e o da exposição dedicada à obra de Alexander McQueen é intenso: Savage Beauty. Quer dizer “beleza selvagem”. E selvagem quer dizer muitas coisas, tanto em sentido literal como figurado — eis uma palavra cheia de bagagem.

A beleza do mundo de McQueen é de facto agreste, indomesticada, não assimilada. É bravia, nómada, às vezes rude. Nos momentos mais extremos, chega a ser bárbara. Por outro lado, tem sempre lá dentro uma sombra fetichista, qualquer coisa de mórbido e grotesco, qualquer coisa de fantasmático e assombrado.

Todas essas características sobrepostas tornam-na muitas vezes inquietante. Aterrorizadora, mesmo.

Que dizer, por exemplo, da mulher negra de cabelos escorridos e unhas enormes que vemos agora com as pernas e os braços agrilhoados a um enorme quadrado de ferro enquanto tenta penosamente descer uma escadaria? 

Estamos no coração de Savage Beauty no Victoria and Albert Museum, em Londres. E — tal como há quatro anos, no Metropolitan Museum (Met), em Nova Iorque — o coração de Savage Beauty na capital britânica é uma sala relativamente pequena mas com um pé direito altíssimo. É nesta sala que toda a gente pára e se senta, como se precisasse de respirar fundo depois das salas anteriores. Só que, quando a beleza que nos devora é selvagem, não há descanso possível. Em momento algum.

No coração de Savage Beauty, estamos no interior de um gabinete de curiosidades. A toda a volta, do chão ao tecto, há informação visual. Fazemos parte de uma estante habitável e os nossos olhos percorrem um compartimento após outro. Dentro de cada um, uma peça. Vestidos, sapatos, corpetes, máscaras, toucados… Depois, pelo meio, há ainda monitores por onde passam registos videográficos de alguns dos desfiles de McQueen. A bizarra mulher negra de que falávamos surge num desses registos.

Foi em 1997 e o desfile chamava-se Bellmer La Poupée — era a colecção de Primavera/Verão e a mulher era a manequim Debra Shaw, quase nua sob um vestido de rede preta, franjas a baloiçar em volta do corpo magro, seco e longilíneo, o grilhão de ferro a tolher-lhe todos e cada movimento. De tal maneira que não parece completamente humana.

Há qualquer coisa de macabro nesta grande marioneta saída de um filme de terror. E o cenário que a rodeia só contribui para o arrepio: desfila sobre uma passerelle inundada de água, como um calabouço esquecido e húmido, ali onde um mal se esconde e nos espreita, pronto a atacar.     

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The Girl Who Lived in the Tree, Outono/Inverno 2008 Fotografias do catálogo da exposição Savage Beauty/victoria and albert museum

Quando Savage Beauty foi inaugurada em Nova Iorque, tornando-se um inesperado blockbuster — mais de 600 mil visitantes em menos de três meses (filas sem fim, manhãs e noites de abertura especial, encerramento adiado por toda uma semana…); uma rival directa de recordistas históricas como Mona Lisa (1963) e Os Tesouros de Tutankamon (1978) —, o Met recolheu testemunhos junto dos que acompanharam o percurso de McQueen. Alguns dos que em 1997 assistiram ao vivo a “Bellmer La Poupée” passaram nota de ter sido doloroso ver Shaw evoluir lentamente pelo espaço. Mas eram opiniões recolhidas nos Estados Unidos, onde o grilhão sobre o corpo de uma manequim negra foi visto como uma referência à escravatura. Talvez. Mas a leitura esquece o título da colecção, que referencia directamente o artista alemão Hans Bellmer.

Nascido em 1902 em Kattowitz — hoje Katowice, na Polónia —, Bellmer foi um frontal opositor ao regime nazi. Na década de 1930, as suas bonecas de corpos macabramente reconfigurados foram uma declaração de força contra o culto do corpo e do ideal físico ariano — uma escolha que terá sido influenciada pela leitura de Oskar Kokoschka, o artista, poeta e dramaturgo austríaco cuja obra foi banida pelo III Reich sob o selo “Arte Degenerada”.

Mens sana in corpore sano? Não. Não com Bellmer. Nem com McQueen.

Com McQueen mente e o corpo são sempre virados do avesso, nunca perseguem o cânone positivista. Com McQueen, a única sanidade reside na capacidade e coragem de trazer à superfície os recantos esconsos e descontrolados do reprimido. Por muito negros que sejam — e com ele são quase sempre... Com McQueen, trata-se de revelar a ferida escondida, de saber — e mostrar — que toda a luz implica sombra. E que a sombra é densa.

É a profundidade a vir à tona. E é isso que nos rouba o ar enquanto avançamos por Savage Beauty, a exposição — aqui, estamos sempre nus frente ao espelho; e o espelho não foi polido até reluzir. Ou, por outra: talvez na verdade não seja um espelho, mas, antes, a superfície turva de uma visão oracular — o que vemos quando nos debruçamos sobre a bacia de sangue.

“Há qualquer coisa de sinistro no que eu faço”, disse um dia McQueen. Explicando: “Há uma certa tristeza [na minha obra], mas acho que a tristeza é romântica. Suponho que sou uma pessoa melancólica.”

Foi ele também quem disse: “Acho o grotesco belo, como a maioria dos artistas.”

Alguns. Sim. Bellmer e Kokoschka, Horst P. Horst e List, mas também nomes vindos muito mais de trás, como Bosch, Vesalius, Campin, Hinz, Aldrovandi, Amusco, Muybridge, e contemporâneos, como Rebecca Horn, Damien Hirst, Jake e Dinos Chapman, Matthew Barney… A todos — e muitos outros — McQueen foi buscar qualquer coisa.

McQueen não foi o primeiro nem será o último nome da moda a mergulhar nas artes plásticas e a voltar de lá com uma obra densa de evocações, referências e citações. Mas fê-lo com uma verve e irreverência raras. Fê-lo quase sempre em relação a autores que partilham a sua paixão pelo lado mais negro do romantismo. E fê-lo no momento certo. Donde o culto suscitado pela sua obra.

É a antítese dos anos do american cool de autores como Calvin Klein, traduções de uma sociedade racionalista, onde as pessoas são vistas como elos idênticos de uma cadeia que tem de funcionar sem solavancos, sem ameaçar jamais a funcionalidade da economia de mercado. McQueen é o contrário dessa sensibilidade dada a regras e emoções temperadas, sem desvios nem picos. Na linha de batimento cardíaco, McQueen é o momento do AVC — o momento em que entramos em falência e vamos ser ressuscitados.

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Vestido de navalheiras da colecção Primavera/Verão 2001

“Pagámos um preço suficientemente alto pela nostalgia do todo e do individual, pela reconciliação do conceito e do sensível, do transparente e da experiência comunicacional”, escreveu o filósofo Jean-François Lyotard. Para concluir: “Na viragem do século XX [para o século XXI], sob a demanda geral de apaziguamento, podemos ouvir os murmúrios do desejo pelo regresso do terror.”  

O terror — infinitamente sublime — é uma forma de voltar a sentir. E com McQueen é tudo sentimento e êxtase. Com ele, deixamos o mundo moderno das ruas luminosas e dos arranha-céus de vidro, viramos costas à tecnocracia e às filas de trânsito. Visitamos ruínas, perdemo-nos em florestas, enterramo-nos em pântanos e travamos batalhas históricas. Com McQueen, não estamos aqui, agora — estamos em todo o lado sem estar em lugar algum, somos tudo e não somos nada: viajamos para a frente e para trás no tempo a matar e morrer, uma e outra vez.

Fizemos um longo caminho até poder viver isto. A moda fez um longo caminho na moldagem da sensibilidade do seu público para poder apresentar-se assim. Foi preciso passar primeiro por gente como Vivienne Westwood e Thierry Mugler — porventura os dois nomes mais próximos do imaginário de McQueen.

Em Savage Beauty há toda uma sala dedicada ao dramático uso que McQueen deu aos tartãs escoceses. E é impossível não pensar em Westwood — os tartãs são um dos selos da marca Westwood desde os anos 1970. Tal como os sapatos de compensados aparentemente impossíveis, a retomar o fio de um passado histórico que julgávamos perdido. O mesmo tipo de sapatos que vimos também antes em Mugler, em quem primeiro tivemos o corpo feminino a tornar-se híbrido fantástico, entre o humano, o animal e o vegetal.

Um dos vestidos de McQueen tem um corte do peito à pélvis e está pintado de negro e vermelho em volta, como uma ferida. Uma das noivas em renda branca tem um toucado de hastes de veado cobertos por uma imensa rede em balão, a esconder o rosto — ela caminha, mas podia estar morta. Como a manequim de corpete de plástico coberto de vísceras. Ou aquela outra de cabedal preto e mascarilha que aparece dependurada de cabeça para baixo, como um vampiro. E depois há os Cristos na cruz, os palhaços com lágrimas de sangue, as asas arrancadas inteiras a pássaros grandes, as borboletas…

McQueen não esteve sozinho em tudo isto, a invocar sempre dor. Na mesma década de 1990, no teatro britânico, nomes como Sarah Kane, Mark Ravenhill e Anthony Neilson levaram à cena incesto e violações, depressões, mutilações e suicídios, infanticídios e pactos de morte.

“Se se aborda a masculinidade, então mostram-se violações; se se está a tentar falar sobre sexo, então mostra-se fellatio e penetração anal; quando a nudez está em questão, então a humilhação também está; se se quer violência, encena-se tortura; se as drogas são o assunto, mostra-se adição. Se os homens se portam mal, então as mulheres também”, escreveu o crítico de teatro Alek Sierz.

Era a geração In-Yer-Face — onde tudo era um murro na redescoberta de um espírito de indignação, aparentemente. Mais havia mais filhos do “thatcherismo”. Como a geração Young British Art, com a qual tudo era também estratégia de choque e murro no estômago — camas desfeitas e sujas, animais fatiados e conservados em formol, corpos decepados… 

McQueen faz parte destas famílias. E a imensa beleza disso é de facto selvagem.
 

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Colecção Primavera/Verão de 1999. No coração de Savage Beauty, estamos no interior de um gabinete de curiosidades

As várias vidas de Alexander

Dois novos livros apanham boleia de Savage Beauty e contam histórias íntimas e fragmentos de um dos mais importantes criadores de moda.     

Será que alguma vez conhecemos Alexander McQueen? Será que precisamos de o conhecer nalguma versão do que foi a sua intimidade? Quão profundo pode ou deve ser o olhar sobre a vida de um designer que sempre anunciou que o seu trabalho era eminentemente autobiográfico? Estas são algumas das perguntas que se levantam perante os dois novos livros lançados no Reino Unido semanas antes da inauguração de Savage Beauty, a exposição dedicada a “um artista que calhou trabalhar em vestuário”, como descreveu a reputada crítica de moda Suzy Menkes no elogio fúnebre de McQueen.

Menkes, então editora de moda do International Herald Tribune (agora é editora internacional da Vogue), é apenas uma de dezenas de figuras da indústria, das relações pessoais e espectros do passado que surgem tanto em Alexander McQueen, Blood beneath the skin (ed. Simon & Schuster), de Andrew Wilson, quanto em Gods and Kings (ed. Allen Lane), de Dana Thomas. E foi Menkes que, no púlpito da Catedral de São Paulo, em Londres, na homenagem prestada ao designer em Setembro de 2010, recuperou uma recordação perturbadora — a de uma conversa em que o criador falava de si no passado. “A raiva no meu trabalho reflectia a inquietude na minha vida pessoal.” Lee Alexander McQueen suicidou-se aos 40 anos, uma semana depois da morte da sua mãe por cancro — uma das mulheres mais importantes da sua vida e que “pode ter sido a única pessoa a quem obedecia”, como escreve Thomas.

O relato de Wilson, que já biografou as escritoras Sylvia Plath e Patricia Highsmith, avisa na capa: “Escrito com o apoio da família McQueen.” É o único. Gods and Kings, escrito pela colaboradora da T Magazine do New York Times e que explora a ascensão e queda de McQueen e de John Galliano, não contou com tal luz verde. É Wilson quem vai mais longe no esgravatar de algumas feridas na sua versão “autorizada” da história do rapazinho do East End londrino que se fazia de extremos e contradições.

Lee, como era conhecido no seu círculo mais próximo, era relutantemente proletário nas suas origens mas desconfortável na abundância que o sucesso profissional lhe trouxe, uma figura arrogante e tímida com uma mente na alta cultura e trato pouco sofisticado que encontrava a sua eloquência, superlativa, na criação de moda. E em particular nos seus desfiles, que atribuíam contexto e densidade a peças de enorme beleza (e, frequentemente, violência). “O que vêem no trabalho é a pessoa em si”, reiterou à Harpers Bazaar em 2007, citado por Thomas.

E essa pessoa foi vítima de abusos vários. É graças a Wilson e aos familiares de McQueen que se nomeiam e descrevem alguns desses abusos com mais detalhe. Resumindo: McQueen foi violado na pré-adolescência. “Ele roubou-me a inocência”, diz o designer, citado por terceiros, sobre o cunhado, que agredia também a sua irmã mais velha.

A psicologização da revelação vai desde a sua relação com o sexo e as suas preferências (fonte de algumas entradas voyeuristas em ambas as obras) até ao efeito que a indústria teve na sua (fatal) insegurança — tese parcial dos dois livros. E essa ligação da narrativa pessoal à expressão artística passa ainda por um elo inevitável à mulher que Lee Alexander McQueen vestia nos seus sonhos e pesadelos.

Na adolescência, Lee fazia vestidos para as suas irmãs e aconselhava-as no vestir. “Estava sempre a tentar fazê-las parecer fortes e protegidas”, dizia, citado em Gods and Kings. As três irmãs eram o seu arquétipo, o seu símbolo de mulher. Um feminino vulnerável mas resiliente, “um sobrevivente” como escreve Andrew Wilson — “Esta era a mulher que ele queria proteger e empoderar através das suas roupas.” Um mergulho em Savage Beauty ou um folhear de imagens na Internet mostra a sua interpretação tortuosa do corpo. Da mulher social, com ou sem roupa. Mas sempre com carga, estética e conceptual. McQueen é dramático.

Cinco anos depois da sua morte e com a sua crescente ascensão no panteão da moda, há muitas histórias contadas sobre ele — e muitas pelo próprio, minadas pela subjectividade do fabrico de uma personagem pública — mas também muitas lacunas. Os dois livros surgem na crista dessa onda, talvez não como biografias na pura acepção da palavra, mas como colecções de polaróides de figuras extintas (uma delas, a de Galliano, agora renascido na casa Margiela depois do escândalo que o afastou da Dior em 2011).

São as revelações sensacionalistas (encontros sexuais, paranóia securitária, consumos e dependências) que mais críticas suscitaram aos dois livros. Afinal, “Lee é Marilyn Monroe. Ele é James Dean”, como disse recentemente Sarah Burton, amiga e número dois na casa McQueen e que viria a tornar-se sua sucessora na marca, ao diário britânico Telegraph. Morreu jovem, talentoso, paga o preço da imortalização com o garimpo de sinais, sintomas e chaves para o mistério da mente criativa.

Lee era um génio atormentado, um rapaz disléxico que desde criança sabia ser gay, vítima de bullying, eterno envergonhado pelo peso ou pela dentição torta. Mas foi também um skinhead temporário ou um brincalhão que dizia ter escrito obscenidades nos forros dos casacos para o Príncipe Carlos quando era aprendiz de alfaiataria em Saville Row. E ainda “uma criatura verdadeiramente aterrorizadora”, “pouco claro, abrasivo e simples”, “e absolutamente brilhante”, como recorda o editor da Vogue EUA, Hamish Bowles, sobre um encontro com o designer no início da década de 1990.

Gods and Kings e Blood beneath the skin contam histórias do rapaz que pôs o seu cabelo nas etiquetas das suas primeiras peças, que misturou a fotografia de hermafroditas de Joel-Peter Witkin e o filme Alien numa colecção (Dante, 1996), ou Van Eyck e garrafas de cerveja partidas noutra (Taxi Driver, 1993). Esta última, aliás, carregada como muitas das suas primeiras criações em grandes sacos pretos de lixo, foi perdida quando, após o seu primeiro desfile no calendário da Semana de Moda de Londres, os escondeu atrás de contentores para ir para a discoteca. Na manhã seguinte, quando se lembrou deles, já não estavam lá.

No estágio com Romeo Gigli, em Milão, aprendeu “o poder da narrativa. O poder dos arquétipos”, diz Lise Strathdee, assistente do designer italiano, a Dana Thomas. Regressado a Londres, impressionou Bobby Hillson, responsável pelo programa de mestrados da Central Saint Martins mesmo sem cumprir os requisitos académicos. Entrou. Enquanto estudava, ia a Paris ver desfiles para os quais não tinha convite e tentou mesmo estagiar na maison Martin Margiela, um dos nomes que mais admirava na moda contemporânea, mas o belga achou “que ele era demasiado talentoso para trabalhar como estagiário”, escreve Thomas. Voltou para Londres, onde fazia roupas para videoclips e o pai lhe dizia para “arranjar um emprego a sério”.

Já conseguia identificar a modelagem, as entranhas, a planta do edifício que é um vestido, a olho nu. A sua importância em termos de corte e silhueta para a história da moda já é reconhecida, embora não unânime — há Galliano, a quem sucedeu na Givenchy em 1996. Em 2001, é um McQueen mais adulto que sai de Paris já com o grupo Gucci no capital da sua marca. Fará o desfile da colecção VOSS, que se torna um dos seus grandes feitos, a usabilidade das roupas aumenta. Os capítulos do sucesso nos dois livros são mais curtos, mais rápidos ou diluídos em detalhes da vida pessoal.

McQueen não foi sempre compreendido — e, até certo ponto, terá gostado disso. A sua estranheza e desconforto intrínsecos, a mente perversa de que se orgulhava, a falta de confiança e a arrogância combinavam-se em declarações ácidas sobre os colegas de profissão ou a imprensa (Menkes incluída). Numa parede do caleidoscópio que é Savage Beauty, e onde está uma versão de muitos best of possíveis das imagens que criou, deixa a sua ambição por escrito: “Quero ser o fornecedor de uma certa silhueta ou de uma forma de cortar, para que quando estiver morto as pessoas saibam que o século XXI foi começado por Alexander McQueen.”

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