Martin Gilbert (1936-2015): biógrafo de Churchill, historiador de tempos sombrios

Autor de uma biografia "definitiva" de Winston Churchill, Martin Gilbert deixa-nos uma vasta obra, de imensa popularidade. Um historiador de arquivos que sabia cativar o grande público.

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Martin Gilbert em Lisboa, em 2004 Daniel Rocha

"O século XX testemunhou alguns dos maiores feitos da humanidade e alguns dos seus piores excessos", assim começa a trilogia que Martin Gilbert dedicou àquele que seria o seu objecto de estudo durante uma vida inteira: o nosso tempo, nas suas grandezas e misérias.

Nascido em Londres em 1936, forçado a deslocar-se em criança para o Canadá, de onde só regressaria com sete anos de idade, Martin Gilbert, que morreu na terça-feira de doença prolongada, aos 78 anos, cedo se afirmou como um dos mais populares historiadores europeus do pós-guerra. A posteridade recordá-lo-á como biógrafo de Churchill, a sua obra mais conhecida, esquecendo provavelmente a espantosa produção de um autor de mais de 80 trabalhos, entre livros e atlas (nos seus livros, aliás, a presença de mapas em apêndice é uma constante).

Jovem professor em Oxford, publicaria em 1963, com Richard Gott, o livro Appeasers, que logo se tornou um sucesso e despertou a atenção de Randolph Churchill. O filho do antigo primeiro-ministro britânico dar-lhe-ia acesso aos arquivos do pai. Martin Gilbert, que sempre se classificou como "um historiador de arquivos", dedicaria duas décadas de estudo à figura de Winston Churchill, de quem fez uma biografia por muitos considerada "definitiva". Ao trabalho que já vinha sendo feito por uma equipa coordenada por Randolph Churchill, e que até então produzira dois volumes, Gilbert juntou mais seis tomos, produzindo uma obra que dificilmente pode ser ultrapassada do ponto de vista da sua vastidão e das fontes utilizadas. Mais discutível é, sem dúvida, a perspectiva algo apologética que, mesmo que moderadamente, Gilbert adopta, descrevendo os gestos do político inglês numa prosa límpida e cativante, mas quase sempre a uma luz favorável. O aplauso da crítica e do público e a popularidade dos seus livros têm uma razão de ser: a escrita de uma absoluta clareza, baseada num trabalho de arquivo a que poucos se entregam.

Seria injusto, em todo o caso, resumir a obra de Gilbert a uma apologia de Churchill, já que a crítica às políticas de "conciliação" com o nazismo praticadas no "entre-guerras", e violentamente fustigadas pelo seu biografado, já se encontrava expressa, de forma contundente, no livro que publicara em 1963 com o seu colega Richard Dott. A obra que lhe franqueara o acesso ao espólio do estadista britânico.  

Martin Gilbert nunca renegou a sua ascendência judaica. Pelo contrário, publicaria diversos livros sobre o judaísmo e a história do povo judeu, alguns dos quais traduzidos entre nós. Sionista convicto, mas moderado, distanciou-se de certos excessos da política do Likud e esse facto terá sido decisivo para a sua escolha como membro da "comissão Chilcot", que investigou o envolvimento do Reino Unido na invasão do Iraque. À designação de Gilbert para essa comissão de inquérito, feita por Gordon Brown em 2009, não terá sido igualmente alheia a crítica pública que Gilbert fizera à estratégia de Bush e de Blair para o problema iraquiano. Trabalhou nos arquivos militares da guerra do Iraque durante três anos, com um afinco pelos documentos que sempre foi o seu traço distintivo como investigador e académico. Uma arritmia cardíaca sofrida em Jerusalém, em Março de 2012, durante uma viagem a Israel, a sua pátria de eleição, impedi-lo-ia de regressar ao trabalho.  
Não tendo propriamente criado uma "escola" ou desenvolvido um pensamento historiográfico inovador ou de ruptura, Gilbert afirmou-se sobretudo como um autor prolífico, dotado de uma invulgar capacidade de trabalho e com dotes excepcionais para elaborar grandes sínteses a partir de um aturado labor de pesquisa documental e testemunhal. Da sua vastíssima bibliografia, poucos livros existem sobre temas específicos e circunscritos. Martin Gilbert preferia escrever, num estilo clássico, elegante e directo, em torno de "grandes temas" (por exemplo, as duas guerras mundiais), o que lhe granjeou uma enorme popularidade no Reino Unido e, mais tarde, em todo o mundo.

Foi, acima de tudo, um intelectual marcado pelo Holocausto. Descida à Barbárie, assim se chama o segundo volume do tríptico que dedicou ao século XX. A consciência dos dramas do seu tempo, que realçou de forma muito mais intensa do que os progressos registados pela humanidade nos últimos cem anos, fez de Martin Gilbert um historiador marcado pelo pessimismo e pela angústia, que encontrou na trajectória biográfica de Winston Churchill um exemplo capaz de lhe devolver a esperança nos seus semelhantes.

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