Marina Abramovic desafia os sentidos com nada

Por 512 horas, Marina Abramovic recebe-nos na Serpentine Gallery, em Londres, como quem nos recebe em sua casa. Uma casa despida que precisa de nós para existir. É a primeira performance original da artista no Reino Unido.

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Marco Anelli
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Silêncio. Silêncio quase sufocante é o que se sente quando se entra na Serpentine Gallery, em Londres, para a performance da artista sérvia Marina Abramovic. Nem os avisos ainda na rua, na fila à espera para entrar, onde nos é mais ou menos explicado por funcionários da galeria o que se passa ali dentro, nos conseguem preparar realmente para o que vamos encontrar: três salas onde na verdade não se passa nada e ao mesmo tempo onde tudo acontece. Marina Abramovic precisa de nós para que esta performance, a primeira grande experiência artística desde a sua estadia no Museum of Modern Art (MoMA), em Nova Iorque, em 2010, exista; e nós precisamos da artista para ali estar. E ela está: 512 horas, 64 dias.

Para podermos entrar na Serpentine, onde Marina Abramovic, de 67 anos, está até 25 de Agosto, todos os dias, das 10h às 18h (excepto às segundas-feiras), temos de passar primeiro pela sala dos cacifos onde aceitamos deixar tudo para trás. Malas, casacos e, claro, telemóveis, máquinas fotográficas e até relógios. Avisam-nos também que o melhor é ir à casa de banho antes, até porque depois não dá para sair e voltar a entrar. Ou dá, mas é preciso ir para a fila novamente. A galeria é limitada a 160 pessoas e cada uma pode permanecer o tempo que quiser lá dentro; por isso, quando uma sai, outra entra.

Uma vez mais leves, abrem-nos a porta e é o silêncio contrastante com a agitação da rua que nos atropela. Não se ouve praticamente nada, ainda que estejam dezenas de pessoas à nossa frente. Mexem-se tão devagar. Não falam praticamente. O que estão a fazer? Não percebemos. Mas sem querer, quase sem nos apercebermos como, estamos a fazer o mesmo. De pé, de olhos fechados. Ou sentados a olhar para uma parede ou para um pedaço de cartão de cor. De observadores rapidamente passamos a observados. Como nós olhamos para os outros na tentativa de perceber o que se passa, de ver o que estão a fazer, percebemos que outros o fazem connosco. Somos uma das muitas peças do puzzle de Marina Abramovic, que partilha o momento connosco.


Ela está aqui. Caminha muito devagarinho. Respira fundo. Observa uma e outra pessoa. Dá a mão a uma, põe as mãos nos ombros de outra. Movimenta-nos de um lado para o outro na galeria, deixa-nos aqui e ali ao mesmo tempo que nos pede muito baixinho que fechemos os olhos e nos diz para relaxarmos. Marina Abramovic quer-nos a nós por inteiro, sem distracções. Nós somos o público dela mas somos também as peças de que precisa para que a sua arte exista. Sem nós, 512 Hours (o nome da performance é a duração da mesma) não existe. Até porque de facto esta é uma performance que parte do vazio das salas e precisa de nós para as encher de alguma forma. É uma performance que parte do nada. Uma ideia tão simples quanto radical e que todos os dias resulta de forma diferente.


Quando, a 11 de Junho, Marina Abramovic abriu pela primeira vez a porta da Serpentine Gallery – a artista tem uma chave e é ela que, tal como se estivesse na sua casa, abre e fecha a galeria todos os dias –, disse não ter um plano para as horas que ali ia passar. No fundo o que aqui acontece é que nós quisermos, é o que Marina Abramovic sentir no momento. Às vezes pode recorrer a objectos básicos, outras vezes bastam-lhe os nossos corpos.

“Estava tão preocupada em perceber como é que o público reagiria. Mas de alguma forma, as coisas correram muito bem logo desde o início. Tudo aconteceu de forma tão espontânea”, diz a artista no diário sobre o primeiro dia. Sim, há um diário. Todos os dias a “avó da performance”, como em tempos se proclamou, publica um vídeo on-line (em www.thespace.org) onde fala sobre o dia na Serpentine. Marina faz a sua avaliação e ao mesmo tempo permite-nos acompanhá-la nesta jornada. Já passaram 38 dias desde que começou e por isso notamo-la já cansada. Ela própria o diz. “É cada vez mais difícil.” Mas há dias em que não esconde a sua fúria por não ter sentido que a arte tenha acontecido. E também se chateia quando sente que as pessoas não se esforçaram por ali estar.

No vídeo que gravou a 28 de Junho, o 16.º dia desde que iniciou a performance, Marina Abramovic foi peremptória: “Foi o pior dia até agora." “Houve uma energia tão negativa neste espaço”, conta a artista, chateada por perceber que “as pessoas só passam por aqui e vão fazer alguma coisa depois”. “Não sabem o que é a concentração, a energia estava em pedaços, não houve sentido de nenhuma forma”, continua, desiludida, lembrando a história de um homem que por ali tinha passado nesse dia e que olhava intensamente para o amarelo que estava na parede em frente a uma cadeira, numa das salas. “Eu achei que talvez tivesse havido uma realização profunda e por isso, quando ele parou, cheguei-me ao pé dele e perguntei-lhe como tinha sido a experiência. E ele disse: ‘Inacreditável. Sabe, este amarelo parece-se exactamente com o amarelo do carro desportivo Audi que tive há muitos anos.’” Não era a resposta que Marina esperava. “Um carro desportivo?”, questiona-se no vídeo. “Não era sobre isso este exercício.”

Mas se Marina se desiludiu com este homem, também muitos se poderão desiludir com a artista. As reacções a esta performance têm sido mistas. Há quem adore e acabe por passar as oito horas na Serpentine, e até volte noutros dias, e quem se vá embora ao fim de uns minutos. A 18 de Julho, a Serpentine Gallery assinalou a chegada a meio da performance – Marina já completou 256 horas –, e em jeito de balanço revelou que já mais de 64 mil pessoas passaram por ali. A maioria permaneceu uma média de duas horas.

“As pessoas estão a responder de forma incrivelmente positiva. Há pessoas com dúvidas sobre a natureza do trabalho, mas todas estão a tirar tempo para experienciá-lo e percebê-lo, e a maior parte acaba por gostar profundamente e sente esta performance como um momento de transformação”, diz ao Ípsilon Sophie O’Brien, curadora sénior da Serpentine Gallery, explicando que por dia passam pela galeria cerca de duas mil pessoas. “Todos os dias a performance muda, uma vez que é um trabalho de improviso e também de resistência. Estamos a meio do projecto e já teve tantos níveis, com tantos ainda para vir.” Para a curadora, Marina Abramovic, que não apresentava no Reino Unido uma performance desta escala há muitos anos, procura em 512 Hours esbater as fronteiras entre performer e espectador, entre testemunha e participante e por isso “está a fazer um trabalho radical à luz das suas obras até agora”.

 

Imaterial


Numa entrevista ao The Guardian, a própria artista disse “nunca ter feito nada tão radical quanto esta performance”. E quem diz isto é a mesma Marina Abramovic que em 1974 apresentou em Belgrado, na Sérvia, uma performance em que dispunha numa mesa 72 objectos, desafiando o público a interagir com ela, através deles, da forma que bem entendesse. Na mesa havia, por exemplo uma pistola carregada. Ou uma faca. “Estava preparada para morrer”, conta na entrevista. E de facto, não morreu mas saiu com marcas, há cicatrizes que nunca desapareceram.

Para a artista, o público dá aquilo que é desafiado a dar. “Foi um desafio a toda a má energia possível. Se dás a uma pessoa uma serra, estás a provocá-la”, diz Marina, para quem o seu trabalho pode trazer o que de pior ou melhor uma pessoa tem.

Prova disso foi o que aconteceu há quatro anos no MoMA com a perfomance The Artist is Present, em que Marina Abramovic esteve durante 716 horas sentada em silêncio a uma pequena mesa, no átrio do museu, e, sem reagir ou falar, fixou os visitantes que eram convidados a sentarem-se à sua frente. Para vivenciar a experiência e partilhar o espaço com a artista sérvia, milhares de pessoas esperaram horas em longas filas, chegando mesmo a pernoitar em frente ao museu. Houve quem conversasse com a artista, mesmo que ela não respondesse, quem se risse com ela e quem se emocionasse com aquele contacto. “A minha ideia para o MoMA era dar amor incondicional a cada estranho, o que aconteceu”, conta.

O mesmo volta agora a acontecer. Marina não só nos quer dar o seu amor como nos quer ajudar a relaxar, a fugir à realidade de todos os dias. E por isso mesmo escolheu ter as salas vazias, de forma a precisar ainda mais de nós. “Tudo pode acontecer, está tudo lá. Precisamos do público, precisamos de mim, e precisamos de química”, disse a artista à BBC. “É o mais imaterial a que podes ir.”

Sophie O’Brien acredita que a performance na Serpentine é uma forma de a artista e os visitantes se envolverem de uma forma diferente da que aconteceu em The Artist is Present. “É um momento muito importante e único”, diz-nos a curadora, para quem 512 Hours é um trabalho que só poderia existir agora, ao fim de mais de 40 anos de carreira de Marina Abramovic, “reflectindo o seu compromisso em explorar o que é que a performance pode ser”. “É algo que tem de ser experienciado.”

E uma coisa é certa. Podemos até nem perceber o que ali se passa, mas não podemos não sentir que ali está a acontecer alguma coisa. O quê? Esperaremos pelo final para ouvir o que Marina Abramovic tem a dizer-nos.

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