Maria Keil: Artista ou operária?

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A artista, fotografada em 2007 Nuno Ferreira Santos

"Menina, não é com a espátula que se pinta. É com o pincel", disse-lhe um dia Abel Manta. Mas Maria Keil não sabia fazer de outra maneira. Nem queria. Perfil de uma artista invulgar a quem pagaram como operária. Publicado originalmente na revista Pública, a 15 de Julho de 2007

Ilustrou, pintou, escreveu, desenhou móveis, cenários e figurinos para bailados. Fez publicidade e criou imagens para selos, mas foi no inovador trabalho de azulejaria, presente em nove estações de metro de Lisboa, que Maria Keil mais oposição encontrou.

"Isso não se faz. Uma pintora não se rebaixa a isso", diziam-lhe os "grandes", como lhes chama. "Agora, o azulejo é um negócio da China." Veio de Silves por indicação de um professor de Desenho da Escola Industrial. "Ele disse ao meu pai que eu tinha jeitinho e lá vim para as Belas-Artes de Lisboa, nem sabia para onde é que vinha", conta Maria Keil à Pública num encontro com a presença dos comissários da exposição "A Arte de Maria Keil" – Ju Godinho e Eduardo Filipe.

Mas não foi em Belas-Artes que aprendeu o que hoje sabe: "Em três anos que lá estive, parece, nunca vi um livro de pintura, de reproduções. Não se aprendia nada, nadinha." Percebeu imediatamente que as raparigas que andavam em Belas-Artes tinham como único objectivo "tirar um diploma e governar a vida, queriam ser professoras". Maria não.

"Depois apareceu lá aquele menino bonito, que foi o meu marido [Francisco Keil do Amaral], que me disse: 'Anda cá para fora que aí não se aprende nada." E terá sido cá fora, já casada (1933), que aprendeu tudo, com pessoas que continua a considerar formidáveis: "Um grupo de gente, mesmo, mesmo, da frente - pintores, gráficos. Era um mundo aberto. Íamos ali para a Brasileira com os grandes: o Manta, o Diogo Macedo, essas pessoas importantes. Ali é que se aprendia. E tratavam-me bem." Depois destas afirmações, aponta para o gravador e pergunta: "Isto está a gravar? Ai que desgraça, não gosto nada disto." Expressões deste tipo irão repetir-se ao longo da entrevista, ora incomodada com o gravador ora com os disparos do fotógrafo Nuno Ferreira Santos. De vez em quando, lembra-nos também que não gosta de conversar. A estes "protestos" segue-se sempre uma curta e afável gargalhada. Até que pergunta: "O que é que vão fazer com isto?" Antes de qualquer resposta, conclui, num encolher de ombros: "Se eu fosse mais nova ralava-me, agora já não me ralo." Estamos a falar de alguém que nasceu há quase 93 anos (a 9 de Agosto de 1914) e não faz cerimónia com a vida.

Na inauguração da exposição (Auditório Municipal Augusto Cabrita, no Barreiro) Maria Keil tinha afirmado que sem os amigos não conseguiria fazer o que fez. "Os amigos ajudavam-me através das conversas, do ambiente. Mas não era fácil viver das artes. Era preciso lutar muito. Fui fazer publicidade. Apareceu aí um tipo, fugido da guerra, [Alfred] Kradolfer, o Fred Kradolfer.

Fantástico, trazia um grafismo moderno. Na escola não se via nada, não havia coisas para se aprender e ver o que se fazia lá fora." Se acaso tivesse vivido noutro país, não sabe se o seu trabalho seria mais reconhecido.

Aliás, diz nem sequer saber se ele merece ser reconhecido: "Vocês é que sabem. Eu faço o que posso." E pode muito. Da ilustração de livros para a infância, aos painéis de azulejo (estações de metro de Areeiro, Picoas, Palhavã, Intendente, Entrecampos, Campo Pequeno, Rotunda, Rossio, Parque, painel da Av. Infante Santo), à escrita, ao desenho de móveis e aos anúncios publicitários, Maria Keil tem um leque muito alargado de formas de expressão.

Muitos leitores se recordarão das imagens que acompanhavam os livros da escola primária (como então se chamava). Mas diz que se tornou artista plástica porque "calhou".

Muito exigente quanto ao trabalho produzido, vai recordando como "os grandes" não apoiavam o seu método e estilo. Porém, parece acabar por interiorizar as críticas que em tempos lhe dirigiam. Eis a expressão que mais repete perante obras que menos lhe agradam: "Isto é demasiado gráfico." E foi justamente no grafi smo inovador que se revelou e distinguiu o talento de Maria Keil. O responsável também por ter sido tão criticada.

Ao pedido de que olhasse para a sua obra como se pertencesse a outra pessoa, responde: "Há uns trabalhos que não prestam para nada.

Há outros assim-assim. Esta época [de imagens depuradas e linhas simples] não gosto nada dela, era muito dura. Era isto que se fazia. Hoje já não faria assim, era um bocadinho gráfico de mais." Conta então como era vista pelos pintores: "Era uma época muito gráfica. Os chefes, os mestres daquele tempo, não apoiavam isto.

Mas era o que eu sabia fazer. Apanhei muita pancada. Por exemplo, o Manta uma vez disse-me: 'Menina, olhe que não é com a espátula que se pinta. É com o pincel.' O meu retrato é quase todo feito com espátula, não tem pincel quase nenhum. 'Não é assim que se faz.' Zangava-se comigo. Mas eu não sabia fazer de outra maneira." Quando se lhe pergunta se fez alguma coisa que preferia não ter feito, surpreende-nos: "Todas. Tudo aquilo estava mal feito para mim." Mudava o seu passado? "Claro que mudava. Então alguém está satisfeito com o que fez? Tristes as pessoas que estão satisfeitas com o que fizeram. É muito mau." No presente, consertava os olhos, pois quase não vê. "Tiraram-me uma catarata e queriam tirar o outro lado e eu disse: 'Não. Já estragaram um, já estragaram.' Não vejo quase nada. Mas também tenho 92 anos, já estou aqui a abusar um bocadinho..." O segredo para estar bem é o de ser "simplória".

Traduzindo: "É o não ter grandes ambições de ser importante. Não há nada mais triste do que ver uma pessoa a armar-se em importante. Dá vontade de rir." Ao dizermos que Maria é importante, faz-nos saber que não acredita. E ri-se.

As pessoas boas transformam-se em ouro

"A vida é uma coisa complicada mas ao mesmo tempo é simples. Cada um é como é. Acho que não se pode fabricar, senão... A coisa fundamental é nós sermos honestos connosco mesmo. Não fazer batota connosco. Não é fácil.


Fundamental é ter-se respeito a si próprio. Não acha? A gente vai pela vida fora, vai fazendo coisas quando vem a propósito. Tem cuidado para não ser chata para os outros. Dá muito trabalho. E depois chega-se ao fim e a gente vai-se embora. Depois começa-se a pensar: o que é que vai ser de mim debaixo do chão? Vou-me transformar em qualquer coisa. Não sei em quê, mas aquilo tudo junto, se calhar há ouro por causa disso, das pessoas boas que foram enterradas. Transformaram-se em ouro. Para que é que lhes servia ser boas? Para alguma coisa havia de ser. O ouro, as pedras preciosas são as pessoas boas que morreram e se transformaram.

As outras desaparecem." Agora, é Keil quem faz as perguntas: "O que é que acha que foi feito das valas comuns do Hitler? Que material é que lá ficou dentro, daqueles milhares de pessoas? Com certeza não se perderam. O que é que ficou? Uma pasta que com o tempo se vai transformando em cristal de rocha, coisas bonitas, de vez em quando aparece uma ametista. Deve ser. Pelo menos, é o que compensa de andar no mundo e pensar que aquilo serviu para alguma coisa." Sugere-se: porque não ilustra esta ideia que tão bem descreveu? "Tenho mais que fazer!" Acaba por dizer depois que a tem escrita e guardada.

Em "A Arte de Maria Keil", dá-se a conhecer três vertentes da sua obra: a ilustração de livros para crianças, a pintura e o trabalho de azulejaria. Originais dos livros e de algumas ilustrações, assim como os estudos para os painéis do metropolitano de Lisboa estão expostos até dia 31 de Julho, no Barreiro (das 17h às 20h). Além da Câmara Municipal do Barreiro, a mostra e a produção dos catálogos contaram com a colaboração da Biblioteca Nacional, do Museu Nacional do Azulejo e do Metropolitano de Lisboa.

Modesta, a artista plástica responde assim à pergunta sobre se gosta da exposição: "Eu não gosto, eu acho que é mal empregada em mim. Está boa de mais. Está uma coisa linda, nunca pensei. Foram buscar aquilo ali às gavetas. Há que tempos que aquilo estava ali fechado. Está bonita, está. Está muito bem."

Parceira de autoria desde cedo com Matilde Rosa Araújo, considera que ilustrar livros para crianças não tem segredo: "Ilustrar para as crianças era fazer conforme o que estava escrito. Para que é que nós ilustramos as coisas? É para ilustrar o que está escrito. Não tem segredo nenhum, nem procura nenhuma, fazia o que tinha de fazer. Por exemplo, aquele livro da construção ["Pau de Fileira"]. De manhã, levantava-me, ia para a janela da cozinha e lá em baixo havia um fosso enorme, que eles iam escavando para fazer um prédio. Achei que valia a pena aproveitar, não tinha outra ocasião de ver fazer um prédio. Fiz aquilo tudo e bateu certo."

Sobre o livro mais recente que publicou, com texto de João Paulo Cotrim, "A Árvore Que Dava Olhos", revela mais uma vez a sua generosidade: "Não me fale nisso. Eu dei-lhe uns desenhos para ele deitar fora e ele fez aquele livro que está tão jeitoso. Aquilo foram eles que fizeram, não fui eu. Aumentaram os desenhos." Maravilha-se com as possibilidades técnicas actuais, mas também com o trabalho em conjunto: "O que se está a fazer hoje é lindo, dantes não havia trabalho de equipa. O computador é milagroso, mas já não está ao meu alcance."

Relativamente a um outro livro lançado no final de 2006, "Anjos de Pijama", continua na mesma linha: "Não fui eu que fiz. Foi aquele grupinho que, com um computador, fez tudo. A Matilde [Rosa Araújo] entregou-me um conjunto de folhas. Era assim: 'O menino caiu, fez um dói-dói e tu-tu-tu-tu...' Que é que eu vou fazer a isto? Isto é muito bonito, mas como é que se monta? Desenhei uma folhinha, um alecrim, uma mosca e depois pensei: vai-se somando, acrescentando e, depois, no fim, faz-se uma apoteose com os bichos todos. E aquele grupinho fez aquele livro, que é lindo. Pegaram numa gaivota e fizeram uma gaivota com duas páginas. Que linda que está a gaivota! Mas não fui eu, foram eles."

Fazer azulejo era desprezível

Maria Keil conta em seguida como começou a trabalhar azulejo numa altura em que era considerado um material menor. "O meu marido [Francisco Keil do Amaral] era o arquitecto do metropolitano. Quando chegou a altura de fazer os cais de embarque, o director, engenheiro Melo e Castro, disse-lhe: 'Não tenho dinheiro'."


Desolado por não querer que as estações ficassem com o chão em cimento e as paredes em alvenaria, Francisco Keil chegou a ponderar não avançar com o trabalho: "Então, eu vou fazer nove estações, a primeira vez que se faz o metro e vão ficar de cimento armado? O que é que eu faço? Eu não faço esta obra." Juntos, em conversa no atelier, ainda puseram a hipótese de usar evinel, um mosaico de pasta de vidro: "Eram aqueles quadradinhos de vidro, que não prestam para nada, sujavam-se muito, embora fosse um material lavável.

Pelo menos podíamos pôr nas entradas." Foi então que se lembraram dos azulejos. "Ele era amigo dos donos da fábrica de Lamego [Fábrica Cerâmica Viúva Lamego] e eles ficaram encantados. Não havia encomendas, era só para casas de banho. Apanhei pancada, não me pagaram nada. Não havia dinheiro, a fábrica é que me pagou como se paga a um operário. Mas, como eram muitas encomendas, ainda se fez assim um montinho [de notas]. Apanhei pancada de toda a gente. 'Ó menina, isso não se faz. Uma pintora não se rebaixa a isso.' Os pintores grandes, os mestres, não concordavam com aquilo." Ao tentar perceber-se quais as fontes de inspiração para criar os painéis, fala-nos de pragmatismo e eficácia: "A gente não se inspira assim em nada de especial, a gente mete-se no assunto, para fazer o nosso trabalho.

Era preciso revestir as paredes, não podia fazer só um bocadinho. Porque a caliça sujava-se muito." Foram anos de grande aprendizagem: "Aprendi uma coisa muito estranha. Porque é que tinha acabado o azulejo na arquitectura. Porque é que foi? Porque a arquitectura era nova, era o [Le] Corbusier, eram aqueles edifícios enormes, não se podiam revestir com azulejos. O azulejo é uma coisa pequenina e frágil, a arquitectura não comportava o azulejo. E então o azulejo caiu. Depois, como havia umas paredes baixinhas, foi um desabrochar. Uma pouca-vergonha!", conclui divertida.

Uns anos depois, fez-se a segunda parte do metropolitano, com novas estações: "Nessa altura já era outra gente, já não era o engenheiro Melo e Castro. Chamaram os grandes artistas para fazer azulejo, não me chamaram a mim. Não me deram um bocadinho de trabalho deste tamanho", diz, fazendo um gesto de pequenez com os dedos. "Dantes, fazer azulejo era desprezível. Agora, é um negócio da China." "Tem de pensar que estava muito à frente", sugere a Maria Keil a comissária da exposição Ju Godinho, que pensa que provavelmente os responsáveis pela segunda fase do metro desconheciam a assinatura do trabalho da primeira fase, "não se cultiva a memória nas empresas".

Maria Keil continua: "As minhas estações não são bonitas nem feias. Mas ninguém fez o trabalho que eu fiz, revestir tudo. Fazem um bonitinho aqui, fazem outro bonitinho ali. São artistas! Mas eu não era, era operária. E um dia, quando foi a segunda parte, chamaram-me do metro. Eu fiquei contente, palavra que fiquei contente. Depois chamei-me parva 50 vezes." Afinal, não era para lhe darem uma estação, queriam que desenhasse o retrato do engenheiro Melo e Castro, entretanto falecido: "Estavam a fazer uma sala grande de recepções e queriam pôr os retratos dos presidentes. Como eu tinha conhecido o engenheiro Melo e Castro, deram-me um molho de fotografias. Eu pensei que era para me darem uma estação. Estavam a chamar tudo quanto era gente grande. Artistas com um A deste tamanho" (abre os braços, expressiva).

Adora contar esta história e pede para que escutemos os pormenores: "Deixe-me contar do retrato. Telefonaram-me do metro, se eu podia ir. O presidente queria falar comigo. Ai que bom, vão dar-me uma estação. Falou-se de tudo quanto havia, menos do metro. E eu comecei a pensar: 'Vou comer o almoço, o restaurante é muito bom. Mas não hão-de ter ocasião de falar de coisa nenhuma. Conversámos, conversámos, até chegar a hora de irmos embora. Tínhamos de ir para o escritório. Vim para casa a roer as unhas, fiquei sem saber.

Comi o almoço. Vim para casa danada. Passado tempo convidaram-me outra vez, outro almoço. Então para que era? Para pintar o retrato do engenheiro." A dificuldade em pintar o rosto de Melo e Castro é uma outra história deliciosa e reveladora de uma sensibilidade e honestidade comoventes: "Pintei o senhor, mas o senhor já não estava aqui, estavam fotografias. Pintei um retrato grande, era um senhor nobre com brasões. Mas não se parecia nada com ele, era uma desgraça.

Ele não estava vivo, não estava ali. Como é que eu havia de fazer a cara dele com vida? Então, telefonei para a filha: 'Passa-se isto assim.' Para ela vir cá dizer o que tem a dizer. 'Eu não consigo fazer o retrato do seu pai'." A filha foi a casa de Maria Keil e confirmou: "Isto não se parece nada com o meu pai." Depois de conversarem um pouco, Maria convidou-a a ficar mais uns instantes: "'Olhe, sente-se aí.' Ela sentou-se e eu pintei o retrato com os olhos da filha, ficou parecido. É que os olhos não se podem inventar, não é? Não se pode inventar a vida das pessoas." A entrevista terminou, mas Maria faz questão de mostrar esse retrato. Das gavetas e prateleiras vão surgindo obras lindas e inesperadas, reconhecemos algumas dos manuais da nossa infância, outras não. "Vocês gostam dessa porcaria?", vai dizendo com sinceridade.

De repente, aparece a imagem de um homem dentro de um tronco de árvore. "Isto é o Aquilino [Ribeiro]. Pediram que se fizesse o perfil do Aquilino. Fizeram perfis, um sorriso aqui.

Nomes bons. Não era assim, o Aquilino era uma árvore. O livro está estragado por causa do meu desenho. Ninguém desceu a ver o que era o Aquilino. Era uma árvore, um sobreiro." Não conseguiu mostrar o retrato do engenheiro.

Não faz mal. "A pessoa não é a cara que tem. É a vida." A de Maria Keil, uma provável ametista.

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