Marco Müller reencarna em Macau

Depois de ter dirigido Roterdão, Locarno, Veneza e Roma, Marco Müller tem o desafio de criar o novo Festival Internacional de Cinema de Macau. A primeira edição chega em Dezembro e representa mais uma reencarnação para o programador que ainda acredita no cinema enquanto utopia.

Foto
Marco Muller aceitou o desafio de criar e dirigir o 1.° Festival Internacional de Cinema e Cerimónia de Entrega de Prémios de Macau (nome oficial), agendado para Dezembro, de 8 a 13. É mais uma “reencarnação” deste homem que já esteve à frente de grandes festivais como Roterdão, Locarno, Veneza e Roma ALBERTO PIZZOLI/afp

Não é certo que Marco Müller tivesse mergulhado no cinema da mesma forma se não fosse pela China, como é provável que não pudesse saber tanto sobre a China como sabe se não tivesse descoberto o cinema. O director artístico e programador nascido em Roma está em Macau para prosseguir essa relação que começou em 1974, ano em que aterrou em Pequim para estudar Antropologia, nos momentos finais da Revolução Cultural.

Aceitou o desafio de criar e dirigir o 1.° Festival Internacional de Cinema e Cerimónia de Entrega de Prémios de Macau (nome oficial), agendado para Dezembro, de 8 a 13. É mais uma “reincarnação” deste homem que já esteve à frente de grandes festivais como Roterdão, Locarno, Veneza e Roma, e que recentemente trabalhou no Festival Internacional de Cinema de Pequim e no Festival Internacional de Cinema da Rota da Seda, ambos na China Continental. “Provavelmente foi por isso que escolhi Macau, não apenas pelos meus contactos posteriores, mas porque tenho 63 anos e para mim esta é a única maneira de poder ‘reencarnar’. Não acredito em outras vidas mas durante o meu tempo de vida posso reencarnar algumas vezes. Macau é uma reincarnação.”

Estamos à mesa para o pequeno-almoço. Müller, homem de ascendência suíça do lado paterno e brasileira, grega e egípcia do lado materno, veste roupas de corte asiático, fala em mandarim fluente com os empregados, come uma sopa de fitas. Se há um estranho nesta sala, não é ele.

Antes de rumar à China nos anos 1970, estudou o idioma desde os 16 anos, e Orientalismo e Antropologia na universidade, em Roma, sob a alçada daquele que considera o seu primeiro mestre, “um dos maiores antropólogos, um homem que teve a mesma importância para os italianos que Lévi-Strauss teve em França”: o académico Alberto Mario Cirese.

“Quando concorri à bolsa [para estudar na China] fiz o pedido para continuar a minha pesquisa na Academia de Ciências Sociais [de Pequim]. Mal cheguei foi-me dito: ‘Academia de Ciências Sociais? Não sabia que fechámos essa academia? Quer estudar Antropologia? Não sabia que isso é agora parte do passado bolorento?’”. O jovem Marco foi então “convidado” a estudar Literatura e a rumar à Universidade de Liaoning, em Shenyang, na Manchúria. A província que faz fronteira com a Coreia do Norte era controlada pelo sobrinho de Mao Zedong, Mao Yuanxin, dirigente ortodoxo que acabaria perseguido e preso após a Revolução Cultural (1976).

Por essa razão, Liaoning era uma província onde “aquilo que era a revolução educativa” atingia o seu expoente máximo, com a desvalorização do conhecimento e o culto dos estudantes que vinham de famílias camponesas, operárias e de soldados. “A nossa universidade foi uma espécie de piloto para esta experiência educativa e basicamente não tínhamos nada para fazer. Podíamos pedir a alguns professores que nos emprestassem livros da biblioteca, mas na maior parte do tempo eu andava de bicicleta e tentava ver o maior número possível de peças de teatro e de óperas revolucionárias de Pequim”, conta.

Durante um ano e meio, o único cinema que viu foram filmes históricos albaneses, melodramas norte-coreanos e thrillers romenos. “Era muito interessante, porque a duração dos thrillers romenos era cortada para cerca de 65 minutos. Retiravam todas as cenas em que duas personagens se beijavam, em que havia mulheres em biquíni, tudo.” Acostumou-se a ver cinema “naquelas versões loucas”. Os únicos filmes não editados eram alguns dos clássicos estalinistas da União Soviética, que apenas a China mostrava naquela época. “Na Rússia já só mostravam as versões da era [Nikita] Khrushchev, em que se removiam todas as cenas de culto estalinista. Apenas na China era possível ver aquilo, era uma situação paradoxal mas muito interessante para alguém que estava a descobrir o cinema dos países não ocidentais. Foi uma grande introdução a outro tipo de cinema.”

A imersão no cinema chinês chegou ligeiramente mais tarde, quando todos os “filmes antigos”, proibidos durante a Revolução Cultural, começaram a regressar aos ecrãs. “Por filmes antigos refiro-me a filmes feitos na República Popular da China entre 1949 e 1965, e penso que 99,5 por cento deles foram proibidos [durante a Revolução Cultural]”, diz.

Foi em Nanjing, na província de Jiangsu, para onde se mudou a fim de continuar os estudos, que começou a ver todos os clássicos chineses que encontrava. “Felizmente, nós pudemos começar a ver todos esses filmes antigos. Digo ‘nós’ porque nessa época casei com uma mulher maravilhosa e, mesmo já não estando casado com ela, trabalhamos juntos desde essa época. É a Marie-Pierre Duhamel, foi júri do IndieLisboa no ano passado. Ela é também uma estudiosa do cinema, produtora, organizadora de eventos, etc.”

A dupla Müller-Duhamel enceta então uma tentativa de descoberta de “linhas comuns” entre obras e cineastas chineses. Durante a Revolução Cultural “os filmes não tinham créditos de abertura ou créditos finais, era sempre mencionado que se tratava de uma realização colectiva” e tornava-se impossível identificar os realizadores.

Marco recorda que à época as projecções tinham lugar em cinemas convencionais mas também ao ar livre. Viu The Red Detachment of Women (1961), primeiro filme atribuído a Xie Jin, num campo de basquetebol. “Xie Jin foi um cineasta importante porque apenas através dos seus filmes percebemos uma das experiências tentadas nos anos 1950 em Xangai, que foi a de cruzar o realismo e socialismo soviético com Hollywood. Isso já tinha acontecido na URSS, alguns realizadores eram fascinados por Hollywood, mas Xie Jin era alguém que crescera a ver muitos filmes americanos.” O investigador decidiu “seguir o rasto de vários cineastas” e, alguns anos depois, quando conheceu Xie Jin, descobriu que “dois dos melhores filmes revolucionários de ópera moderna de Pequim tinham sido realizados por ele”. Xie Jin, “uma espécie de Douglas Sirk do cinema chinês, muito bom a realizar melodramas”, foi criticado mas nunca completamente banido. “Precisavam dele. Não foi exactamente reabilitado [pelo regime], mas deixaram-no trabalhar.”

Foto

Mostrar a China

Carregado de conhecimento e informação sobre a China, a sua cultura e o seu cinema, regressa a Itália, ensina Musicologia durante dois anos, mas não resiste ao chamamento do cinema. “Naquela época, na Europa, não havia grande interessa pela cultura popular da China. Era ainda vista como algo demasiado rígido para ser excitante e eu queria muito partilhar algumas das minhas descobertas”, recorda.

Começa por trabalhar em 1977 para a Mostra Internacional de Novo Cinema de Pesaro, naquilo que seria um pequeno panorama do cinema chinês. Mas o primeiro grande momento da sua carreira de programador surge em Turim, quando em 1982 cria Ombre Elettriche, primeiro festival de cinema da cidade, centrado na história do cinema chinês. “Pesaro era como o Festival de Edimburgo daquele tempo, onde estavam as novas ideias do cinema. Achei que tínhamos de fazer mais e melhor que aquilo, tínhamos de avançar e tentar juntar as peças do puzzle, descobrir quem eram os autores do cinema chinês, porque havia autores, mesmo nos anos mais ortodoxos. Isso não se revelou possível em Pesaro naquele momento e decidi encontrar as condições para fazer uma grande retrospectiva de cinema chinês. Descobri que a cidade de Turim estava interessada, porque não tinha um festival, e convidaram-me para inventar o primeiro festival de Turim.”

O Ombre Elettriche “foi sensacional”, recorda. Foi, para a Europa, o “lançamento da ideia de que o cinema chinês era algo completamente diferente”. Mostraram-se 135 filmes, de 1924 a 1981, e foi preciso encontrar cópias “nos lugares mais absurdos”. O Arquivo de Filmes da China apenas cedia filmes classificados como progressistas. “Não cediam os materiais de referência de que precisávamos, porque eu queria que as pessoas percebessem a diversidade, os géneros, como os géneros de Hollywood tinham sido reformulados em Xangai”, prossegue o programador.

Era preciso mostrar tudo, mesmo o cinema feito durante o período da ocupação japonesa (1937-45), já que “alguns dos melhores realizadores continuaram a trabalhar”. Müller encontrou filmes no World Theater de São Francisco, onde Orson Welles filmou cenas de The Lady From Shanghai, mas “a descoberta mais louca foi a de uma colecção de filmes chineses no antigo cinema da Chinatown de Havana, o Cine Aguila de Oro”. Trazer os filmes de Cuba “não foi difícil porque ninguém sabia o que eram aqueles filmes, ninguém estava interessado”. Garante que mais de 1000 meios de comunicação estiveram na retrospectiva em Turim, mais de metade deles não italianos. “Não estou a exagerar. No ocidente foi de facto a grande abertura ao cinema chinês”, garante.

Círculo perfeito

Estávamos no começo da década de 1980 e Marco Müller começava “a conhecer algumas das pessoas que tinha admirado como leitor e investigador”. Serge Daney, crítico de cinema e editor da Cahiers du Cinéma (1973-1981), foi uma delas. “Tenho de mencioná-lo porque foi por causa dele que comecei a sentir que a minha investigação sobre cinema chinês teria ficado como que órfã se não a tivesse conectado com os cinemas dos países em volta, se não tivesse continuado o meu caminho”, conta. Quando iam almoçar, era sempre Daney quem fazia perguntas em vez de querer dar lições. “Serge realmente forçava-me a continuar o meu raciocínio. Então disse-lhe que, assim que a retrospectiva Ombre Elettriche estivesse concluída, eu iria encontrar uma forma de continuar as minhas explorações. Felizmente, como tinha trabalhado com Pesaro, o director chamou-me de volta para ser o programador.”

A mostra de Pesaro tinha sempre por base retrospectivas históricas, era “um festival de estudos”, como lhe chama Marco – publicava livros, monografias, dedicava-se a cinematografias e cineastas em particular. Do mesmo modo que trabalhara sobre cinema chinês, Müller trabalhou sobre cinema japonês, indiano, coreano. “Fui para a Coreia [do Sul] pela primeira vez em 1982, nessa altura os festivais não estavam a tentar mostrar o cinema coreano. Depois, aos poucos, decidi que tinha de completar a minha educação cinematográfica e voltar à Europa, para me confrontar com o cinema soviético.”

Explica que o cinema soviético “não era um monólito”, havia vozes e correntes diferentes, muitos estilos com tradições estéticas de diferentes povos e culturas. Giovanni Buttafava, académico e crítico que chegou a participar em filmes de Nanni Moretti como Palombella Rossa (1989), foi o seu segundo mestre. “Giovanni disse-me que para perceber o cinema soviético tinha de ser em imersão total – e foi.” Durante três anos viajaram e trabalharam juntos. Passavam dois a três meses em cada país da antiga União Soviética a ver filmes, e mais três ou quatro meses “a convencer as autoridades” a ceder as cópias.

Foram tempos de muito estudo e de incontáveis encontros em Pesaro, até 1989. Uma das amizades que cultivou foi com Hubert Bals, criador e primeiro director do Festival Internacional de Cinema de Roterdão. Viajava para Roterdão sempre que havia cineastas asiáticos convidados, estavam em permanente contacto. “Quando Hubert morreu, o conselho de administração do festival decidiu que a pessoa para o suceder tinha de ser alguém que o tivesse conhecido, que o admirasse, que conhecesse a filosofia e não apenas os aspectos práticos do que ele estava a fazer.” Esse alguém era Marco Müller.

“Fui então para Roterdão [em 1989] e imediatamente senti que a parte mais importante do legado de Hubert era que um festival não deve limitar-se aos filmes que já poderiam existir sob as condições vigentes da produção e do mercado. Um festival deve também ser sobre os filmes do futuro, os filmes que gostaríamos que existissem”, explica.

Lembra que Hubert Bals “era uma pessoa muito generosa”, convidada os realizadores que admirava a apresentarem os projectos de sonho que tinham sido forçados a abanador e tentava ajudá-los. Müller quis manter esse desígnio e estruturá-lo. Criou o que hoje é chamado CineMart (mercado para co-produções), bem como o Hub Bals Fund. Mas foi também nessa altura que percebeu que “pode mesmo haver incomunicabilidade entre culturas”.

Foto

“No primeiro ano do Hub Bals Fund queria mesmo que o fundo fosse um incentivo aos filmes, que os filmes pudessem avançar por causa disso. Os meus colegas holandeses não achavam correcto, achavam que tínhamos de dar 10.000 dólares a oito filmes em vez de 80 mil dólares a um filme. Eu entendia que não, que tínhamos de definir as nossas prioridades, de saber que o que este cineasta estava a fazer era mais importante que os outros. Para o CineMart sempre quis que privilegiássemos cineastas não ortodoxos, mas eles preferiam nomes conhecidos e grandes, para que pudéssemos atrair mais interesse. Em princípio, essa é uma forma inteligente de pensar, mas quando se atraem produtores para cineastas já bem estabelecidos, a maior parte deles vão focar-se nesses projectos e descartar tudo o resto – e eu queria que começassem a acontecer coisas no cinema africano, por exemplo. Senti que Roterdão podia ser esse pivot. Como as coisas não correram como eu queria, decidi sair de Roterdão antes do final do meu mandato, quando fui convidado para liderar o festival de Locarno.”

A sedução do cinema

De todos os festivais em que trabalhou, nenhum entusiasma o discurso de Marco Müller como o de Locarno, casa suíça onde esteve durante nove anos. A primeira coisa que fez, quando chegou em 1991, foi duplicar a escala das projecções da Piazza Grande. “Senti a importância de um cinema ao ar livre daquelas proporções”, conta, ao mesmo tempo que recorda ter sido esta a primeira vez que teve “de começar a pensar em programar para um número gigantesco de espectadores”.

Em Locarno, criou ainda um fundo, o Montecino Verita Foundation. “Queria que fosse um fundo de cinema que pudesse apoiar as utopias cinematográficas. Queríamos ajudar e tínhamos critérios muito claros: apenas trabalharíamos com países não ocidentais – o sul e o oriente – e podíamos chegar a dar mais de 100 mil dólares a um filme. Isso significava muito.”

Müller faz questão de dizer que não acredita em “mandatos iluministas” e que “não se educa uma audiência”. Mas lembra que tampouco existe uma audiência abstracta, “apenas grupos muito diferentes de espectadores que podem ser agrupados pelos seus hábitos de consumo, pela sua educação, e portanto cada grupo tem de ser abordado de formas diferentes”. Não foi qualquer mandato mas tão só a capacidade de sedução do cinema que o inspirou a arriscar e a apresentar ao público algo além do convencional.

“O meu principal problema quando comecei em Locarno foi que a maioria dos filmes projectado na Piazza Grande eram de distribuidores suíços, e aquela era como que a última projecção promocional para um filme. Eu disse não a isso. Locarno paga ao distribuidor uma grande verba por essa projecção única, já que estamos a falar de sete ou oito mil pessoas. É importante também estabelecer um tipo de relação em que seleccionamos um filme que talvez interesse ao distribuidor e que ele possa comprá-lo.”

No seu primeiro ano em Locarno, projectou-se na Piazza Grande The Death of Empedocles, de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet. Os programas da Piazza Grande eram sempre sessões duplas. “Decidimos programar este filme em segundo lugar. Havia cinco mil pessoas no começo e apenas umas 1500 ficaram até ao fim”, recorda. Oito anos mais tarde, Locarno acolheu a estreia mundial de outro filme da dupla Straub-Huillet, Lothringen!. “Foi algo como ‘Bom, o Marco tentou algo oito anos atrás, que não resultou. Vamos ver se agora vai resultar, porque caso contrário ele terá de ser como o governador do Peru no conto que adaptado por Renoir em La Carrose D’Or e será forçado a sair por causa desta decisão arriscada’. Mas as pessoas ficaram. Oito anos mais tarde, alguma coisa tinha acontecido”, sorri.

Müller gosta de fórmulas que levem os espectadores a serem confrontados com o inesperado, uma espécie de engodo que atrai o público para uma coisa, dando-lhe o que ele espera e algo mais. “Ainda me lembro que fazíamos coisas como a estreia internacional de ‘Speed’, com Sandra Bullock em palco, seguido de um filme de Kiarostami – mas claro que escolhendo um filme de Kiarostami que pudesse atrair e chegar mesmo aos espectadores que estavam apenas habituados a filmes suíços e americanos.”

Foto

Regresso a Itália

Em 1998, ainda nos anos de Locarno (1991-2000), funda em Itália, com o grupo Benetton, a produtora Fabrica Cinema. “Privilegiávamos realizadores que tinham uma verdade especial para contar mas que não podiam contá-la nas condições que naquele momento enfrentavam nos seus países. Foram anos muito bons”, recorda.

Primeiro com a Fabrica Cinema e depois com a Downtown Pictures, produtura sediada em Bolonha, produziu ou co-produziu vários filmes que acabariam premiados em festivais internacionais: Blackboards, da iraniana Samira Makhmalbaf; The Sun, do russo Aleksandr Sokurov, Red Flowers, do chinês Zhang Yuan, e Tropical Maladay, do tailandês Apichatpong Weerasethakul, são alguns exemplos.

“Se olharmos para prémios e condecorações, a maior parte dos filmes que produzi receberam prémios importantes”, constata Marco, que no entanto teve algumas experiências difíceis, como durante a preparação de No Man’s Land, de Danis Tanovic, que acabou por vencer o Óscar para Melhor Filme Estrangeiro. “Ainda me lembro quando mostrei a primeira versão do filme a um grande distribuidor em Itália e ele adormeceu. Lutámos [com Danis Tanovic] sobre o guião, lutámos durante a montagem. E foi quando comecei a perceber que um montador pode realmente fazer a diferença, no sentido em que pode realmente revelar a verdade que foi esquecida no filme, até pelo realizador.”

Depois da experiência como produtor, regressou aos festivais. Aceitou dirigir Veneza a partir de 2004 e ali permaneceu durante oito anos. Foi o responsável pelas estreias em competição num grande festival de Johnnie To e Takashi Miike. “Algumas pessoas acharam que era um escândalo”, ri-se.

Na cidade dos canais, criou a secção Orizzonti, espaço para “seguir o cinema que estava fora daquilo a que normalmente chamamos cinema”, para perceber o que está para além do cinema. Tentou levar a ideia consigo quando regressou finalmente à Roma onde nascera, para dirigir o festival da cidade, mas nem tudo foi fácil.

“Queria ter a experiência de estar responsável por um evento de grande escala numa metrópole. Aprendi muito mas foi uma experiência horrível, porque com a instabilidade política de Itália era quase impossível manter uma linha programática. O festival de Roma tinha sido criado pelo antigo presidente da câmara [Walter Veltroni] como uma ferramenta de auto-promoção. O legado que deixou foi o de um festival apenas composto por filmes mainstream, com estrelas”, lamenta Müller.

Foto

Mas ao mesmo tempo que critica Roma, admite que “foi, com Locarno, o projecto mais entusiasmante”. Nesses festivais “pode mesmo fazer-se a diferença para um filme” e nada melhor que um exemplo. “Quando estava em Locarno abordei um estúdio para fazer a estreia mundial de uma produção mais pequena de um novo realizador britânico, Peter Cattaneo. O filme chamava-se The Full Monty, uma versão extremada das comédias da classe operária de Ken Loach. O estúdio primeiro disse-me ‘Está louco, não permitiremos que faça isso, é um filme pequeno’. Eu insisti e voltei a insistir e eles concordaram em mostrar o filme na Piazza Grande. Quinze minutos depois de começar a projecção as pessoas estavam a rir, 40 minutos depois estavam a aplaudir e o filme acabou por ter uma resposta tremenda. O estúdio teve de alterar os planos de distribuição, duplicar ou triplicar o número de cópias para cada país europeu. A mesma coisa aconteceu em Roma com alguns filmes e, se o mercado de cinema em Itália não tivesse sido sufocado pelo peso de demasiados filmes americanos, e por demasiadas comédias italianas estúpidas, poderíamos ter dado uma hipótese a muitas obras. Quando temos uma projecção como a que tínhamos em Roma, para 15 mil pessoas, aquelas pessoas levam o filme consigo.”

China, China

Marco descreve a sua relação com a China como “complicada mas muito apaixonante”.

Em 2005, Pequim convidou-o para ser o representante ocidental nas celebrações dos 100 anos do cinema chinês. “Aceitei com prazer, fiz palestras e outras coisas. Provavelmente por causa disso, quando pensaram em criar um festival de cinema de Pequim, pensaram em mim. Disseram-me que precisavam que eu estivesse em palco na noite de abertura do Festival de Cinema de Pequim, para fazer um discurso em que explicasse porque é que China podia agora abrir-se e ter mais do que um festival, e foi o que fiz. Desde essa altura que mantenho uma relação com as instituições políticas municipais que organizam o festival.”

Conta que durante vários anos a organização do festival de Pequim o convidou a regressar à China para trabalhar. Mas o programador estava mais interessado no Festival de Cinema de Xangai. “Por isso, fiquei muito contente quando durante o meu último ano em Roma fui chamado a Xangai. Perguntaram-me se eu gostaria de ser o director artístico do festival e eu respondi ‘Sim, mas digam-me qual é o vosso projecto’. Disseram-me ‘Queremos que este seja o maior festival do mundo, queremos mostrar mais filmes que Toronto’. E perguntei ‘Porquê, se o vosso festival dura apenas oito dias? Não percebem que os filmes acabarão por anular-se uns aos outros?’. ‘Mesmo assim, temos de ser maiores que Toronto’. Senti que não podia fazer aquilo, não podia ser responsável perante as pessoas que fazem os filmes, as pessoas que fazem um esforço para que os filmes circulem.”

Finalmente, a capital chinesa acabou mesmo por ser o destino. Müller cumpriu o mandato em Roma até ao fim, “até pela relação emocional” que tem com a cidade. Em Pequim, conseguiu convencer os responsáveis de que era importante ter uma selecção oficial e que deveria haver uma distinção clara entre os filmes seleccionados e o resto da programação. A estratégia funcionou, gerou interesse e deu visibilidade às obras eleitas. “O problema, depois, é que os filmes não se vendiam.”

Incapaz de fazer os filmes ocidentais não-americanos circularem através do Festival de Pequim, Müller acabou por aceitar convite para criar o novo Festival de Cinema da Rota da Seda, em Fuzhou. “Pensei que aí fosse mais fácil [que os filmes se vendessem], devido à nova estratégia One Belt One Road [estratégia de cooperação e desenvolvimento entre a China e os países da Eurásia]. Acreditei que, como é uma estratégia política tão grande, algo aconteceria. Mas, mais uma vez, nada. Perdi a fé. Não dá para trabalhar no Continente chinês e sentir que não se pode fazer nada para que os filmes que mostramos ganhem vida...”

Esse, acredita, será também um dos grandes desafios do Festival Internacional de Cinema de Macau (ver caixa): garantir que ocidente e oriente possam conectar-se e acima de tudo que a China descubra outras cinematografias ocidentais. “Foi também por isso que passeia agora duas semanas em Xangai e Pequim, para falar com distribuidores. Há muito trabalho para ser feito. Não é nada óbvio que filmes ocidentais não-americanos possam tornar-se atractivos na China”. E, nisto, talvez Macau possa ajudar.

Sugerir correcção
Comentar