Manoel de Oliveira: um mestre emergente

Cada um dos seus filmes constituía uma inovação e abria novos espaços para o cinema.

Tive a sorte de conhecer Manoel de Oliveira em Roma, quando ali era Embaixador e ele lá foi receber o prémio Catedrais Europeias da Cultura.

Chegou a Roma na véspera da atribuição do prémio. Era Conselheiro Cultural em Roma Paulo Cunha e Silva, com quem foi um privilégio trabalhar e cuja inteligência, persistência e acesso no meio cultural italiano nos permitiu fazer muito com nada. O notável trabalho que agora está a desenvolver no Porto como Vereador da Cultura reflectem bem esses atributos. Pedi-lhe para ir buscar o Oliveira ao aeroporto. O Paulo presume que depois da viagem ele quer ir descansar para o Hotel. O Mestre porém pergunta-lhe o que ele vai fazer. Paulo responde que vai ao vernissage de uma exposição do Calvert no Palazzo EXPO e o realizador não hesitou, disse logo que o queria acompanhar. A seguir propôs ir jantar ao Alfredo a la Scofra, para matar saudades, após o que sugeriu uma passeata pela Piazza Navona!

O prémio tem o prestígio de ter sido recebido por altas figuras das artes e das letras, desde Francis Coppola a Umberto Eco. A entidade que o concede, financiada pela Presidência da República italiana, Ministério da Cultura, Região do Lázio, Província e Camara Municipal de Roma e até pela Comissão Europeia, é contudo uma associação no mínimo bizarra. Constituída por um pai e dois filhos, e um tiranete tolo que se dizia “executivo”, o qual se lembrou de levar o premiado para a sala sumptuosa dos Palácios capitolinos onde ocorreu a cerimónia e deixar a filha que o acompanhava, Adelaide Trepa, no hotel. Manoel de Oliveira recusou muito justamente começar a cerimónia sem a sua presença e aguentou estóico uma hora que ela chegasse, o que só aconteceu quando, depois de repetidas promessas de que estava a chegar, mandei o carro buscá-la ao hotel.

A cerimónia teve lugar numa sala dos impressionantes palácios Capitolini, cujas escadas Manoel de Oliveira com os seus 102 anos galgava e descia com uma ligeireza que eu mal conseguia acompanhar e observava aterrado. O Mestre recebeu o prémio, fez em voz firme um belo improviso de dez minutos. O laureado seguinte foi Alesio Bono, intérprete de Caravaggio no filme do mesmo nome. Quando este acaba de falar, Manoel pede para dizer mais umas palavras e evoca o final do filme, que elogiou, quando Bono/Caravaggio procurava madeira na praia antes da sua morte.

Meryl Streep foi também uma das agraciadas nesse ano. Como não pôde estar presente na cerimónia de entrega dos prémios devido a outros compromissos, o Embaixador dos EUA, o meu bom amigo David Thorne, ofereceu no dia seguinte um cocktail na sua residência. Apresentei Oliveira a Meryl: esta fez-lhe uma cortesia, como se faz às realezas, e beijou-lhe a mão.

Uns meses depois tive o privilégio de passar de novo uns dias na companhia de Manoel de Oliveira, convidado de honra do festival de cinema de Stresa, no lago Magggiore.

Tratava-se de um festival de realizadores emergentes. Meia hora antes da cerimónia de abertura, o director do festival pede-me para dizer umas palavra sobre Manoel de Oliveira. Fiquei um bocado sem saber o que dizer. Mas depois de o Mestre ter tido uma entrada triunfal na sala, com a audiência a levantar-se para uma longa ovação, ocorreu-me dizer que, pela dimensão da aclamação a que tínhamos acabado de assistir, não se poderia dizer que Manoel de Oliveira fosse um realizador emergente no sentido de ser desconhecido. Mas era-o porque cada um dos seus filmes constituía uma inovação e abria novos espaços para o cinema. Pensei que o homenageado, sentado a alguma distância do lugar onde falei em italiano, não teria entendido, ou se calhar dado atenção às useiras palavras de ocasião que se usam nesses momentos. Mas mal acabei de falar levantou-se, veio ter comigo, e disse-me "gostei muito do que disse. Vou-lhe mandar uma garrafa do Porto lá de casa que o meu filho Manuel Casimiro mandou engarrafar quando fiz cem anos".

No dia seguinte jantávamos, o Paulo e eu, com o Mestre e o seu neto Ricardo Trepa, quando este atende o telemóvel. Era do El País, queriam um comentário de Oliveira sobre a morte de Saramago ocorrida nesse dia. O neto passou-lhe o telefone e ouvimos o Manoel dizer "é assim, está-se e depois não se está”.

Neste dois casos, parece-me que estão, e para ficar por uns tempos.

Embaixador reformado

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