Manoel de Oliveira teve o seu acto na Primavera

O realizador de Aniki-Bóbó foi a enterrar, esta Sexta-feira Santa, no cemitério de Agramonte, no Porto. Uma coincidência que levou alguns dos espectadores dos seus filmes a lembrar-se d’O Acto da Primavera. O bispo do Porto falou dos “insondáveis desígnios de Deus”. Toda a gente relevou a grandeza da obra e o exemplo do homem. E houve aplausos.

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Fotos Adriano Miranda
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A sexta-feira amanheceu límpida, quente e sossegada na cidade esvaziada em férias de Páscoa. Mesmo assim, logo pela amanhã, observava-se um correr anormal de pessoas em direcção ao largo fronteiro à Igreja do Cristo-Rei, na Foz portuense.

Manoel de Oliveira, falecido na véspera, iria ter um último dia de encontro físico com a população da sua cidade natal, previsivelmente reforçada com uma avalanche de visitantes que viriam prestar uma última homenagem ao maior cineasta português de sempre, uma figura reconhecidamente de dimensão universal, além do cineasta que, em todo o mundo, estendeu até mais tarde a sua carreira – 106 anos de vida, mais de 80 anos de filmes em quase sete dezenas de títulos.

Se a parafernália de carros-estúdios de televisão e das câmaras de filmar e fotográficas acabava por ser o primeiro foco da curiosidade popular, quase toda a gente sabia a razão desse movimento. “Morreu o Manoel de Oliveira. Era uma maravilha. Eu ajudei a criar os seus netos, há já muitos anos, no ténis, e quis vir agora aqui dar um abraço à família”, dizia Fernando Couto Viana, encostado a uma das árvores do largo.

Ao lado, o casal Manuela e António Soares, que vinha da sua caminhada pela Foz, quis também parar para ver. “Era muito boa pessoa. Eu gostava muito dele, e nunca me esqueço do Aniki-Bóbó, que vi quando era pequena”, confessava Manuela Soares.

As memórias, adjectivos e elogios pontuavam também as mensagens que iam sendo deixadas nos livros de pêsames, à entrada da igreja. “Um grande homem que nos deixa”; “Ao Mestre”; “Sempre gostei de si”, “Vai brilhar mais uma estrela no céu”  com assinaturas anónimas; ou, mais por extenso, “Antonieta, neta da costureira Adelaide, do tempo da infância passada no Douro”.

Mas era para as figuras mais mediáticas que o espaço ia sendo reservado pela polícia e cordões de segurança. Às três da tarde, o Presidente da República, o primeiro-ministro e muitas outras figuras da política, do cinema e das artes marcariam presença na última cerimónia. Mas as pessoas iam chegando com o vagar da manhã.

Da política, os primeiros foram o constitucionalista Pedro Bacelar de Vasconcelos, que trazia consigo, além da memória feliz de Aniki-Bóbó, “uma mensagem de profunda consternação pessoal” de António Costa, que não pôde deslocar-se ao Porto; e o eurodeputado Paulo Rangel, que também assumiu estar em representação do PE, a salientar a perda de um homem e um artista cheio de “humor, ironia e inteligência”.

Já de tarde, à entrada da Igreja de Cristo-Rei, antes de começar a cerimónia religiosa, Mário Cláudio chamava a atenção do PÚBLICO para uma coincidência curiosa. “Repare que Manoel de Oliveira, que sempre assumiu que o teatro era o paradigma do seu cinema, vai baixar à terra no dia em que se celebra o momento mais teatral e dramático da Paixão de Cristo". “Ele teria gostado disso, certamente”, acrescentou o escritor, referindo-se ao filme O Acto da Primavera, onde o realizador regista um Auto da Paixão realizado em Trás-os-Montes. 

Esta coincidência não escapou, de resto, ao bispo do Porto, D. António Francisco dos Santos, que presidiu à cerimónia religiosa – que não pôde ter missa por causa da época pascal que estamos a viver. “São insondáveis os desígnios de Deus”, disse o bispo, depois de salientar “a longa vida de serviço à cultura e à sociedade” vivida por Oliveira, e de lembrar a importância de ter sido o cineasta o interlocutor dos artistas portugueses na recepção ao papa Bento XI, em 2010, em Lisboa.

Já fora da igreja, e numa leitura mais laica, o crítico e investigador francês Jacques Lemière assinalava também a coincidência da morte de Oliveira com o início da Primavera – e lembrou de novo o paralelismo com o filme O Acto da Primavera, um dos primeiros que lhe fez ver "a grandeza da sua obra" e a despertar a atenção para o cinema português.

Lemière foi um dos três estrangeiros mais facilmente reconhecíveis que vieram de fora e de longe para esta última homenagem ao realizador de Vou para Casa. O mais notado foi o actor norte-americano John Malkovich, que entre a igreja e o cemitério, aqui acompanhado pelo produtor Paulo Branco, manteve o recolhimento e evitou prestar declarações.

Antes do actor d'O Convento, tinha chegado o director do Cinemateca de Madrid, Chema Prado, amigo e apaixonado pela obra de Oliveira desde os anos 70, e que considerou que “não podia deixar de vir homenagear esta personalidade incrível”.

Na sucessão de declarações que iam sendo prestadas aos jornalistas, Domingos Gomes, médico da área desportiva, lembrou que Oliveira “era de uma grande teimosia e persistência perante tudo na vida”. E citou o episódio, passado há uma década, quando o tratava de uma entorse num tornozelo e tentou demovê-lo de fazer uma viagem a Tóquio. “Sem resultado. Ele fazia o que queria, e era sempre de uma grande irreverência”.

Essa irreverência foi também salientada, e de certo modo reivindicada, por João Botelho. "O Manoel estava farto dos filmes – disso que agora só temos nos centros comerciais. Ele gostava era do cinema. Por isso, pegou nos filmes dele e levou-os para o céu”, defendeu o realizador d'Os Maias, reassumindo que lhe deve tudo. “Além de que ele inventou a 5ª. idade, e eu ainda só vou na 3ª.”.

O que é que vai ficar, após a morte de Oliveira? João Mário Grilo diz que “vai ficar tudo: os filmes, a ética, o exemplo”. “O desaparecimento do Manoel é, na verdade, tão significativo como a sua presença”. O professor e realizador nota que “Oliveira sempre interpelou o país, que não tem escala para um homem desta dimensão” – e cita o desaparecimento recente de Herberto Helder, mas eleva a grandeza do realizador de Amor de Perdição a um patamar ainda mais alto, a Camões ou Miguel Ângelo.

João Fernandes, actual director-adjunto do Museu Rainha Sofia, em Madrid, mas que foi, de algum modo, o grande responsável pela “entrada” da obra de Oliveira no Museu de Serralves, e pela programação do seu centenário (2008), diz que "o país fica agora com a responsabilidade de cuidar e exibir a sua obra”.

Ao lado, o presidente de Serralves, Luís Braga da Cruz, avançou que a fundação continua a acreditar ser possível concretizar a Casa-Museu Manoel de Oliveira, segundo o projecto que Álvaro Siza já executou para esse fim, estando em curso o processo de candidatura aos indispensáveis fundos europeus.

Tema recorrente nas declarações foi também a eventual trasladação dos restos mortais de Oliveira para o Panteão Nacional, hipótese que começou por ser lançada pelo secretário de Estado da Cultura. As opiniões dividiram-se: Domingos Gomes reivindica a transferência. Paulo Rangel disse-se “pouco dado a panteões”, e acrescentou que preferiria continuar a vê-lo na sua cidade. Também Manuel Pizarro, vereador do PS, acha que ainda é cedo para levantar essa questão. “Manoel de Oliveira foi um resistente em afirmar o Porto como cidade de Cultura”, salientou.

À saída da igreja e à entrada do cemitério, Manoel de Oliveira voltou a ter aplausos.

 

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