Malandra, teórica e melódica

Apocalypse, Girl é o disco em Jenny Hval sai da casca. Uma sexualidade excessiva, por entre batidas electrónicas, serve de crítica ao capitalismo – e, mais importante do que isso, produz grandes canções.

Fotogaleria
Com Jenny Hval não se trata só de fazer canções. As canções têm de ser embrulhadas num conceito. Porque é daí que ela vem – da arte conceptual DR
Fotogaleria
Apocalypse, Girl soa um pouco como a banda-sonora de uma peça de teatro íntima, em que – apercebemo-nos depois – a intimidade serve para falar de outras coisas DR

Ela pode passar de ordinária a delicada no intervalo de uma canção, de inteligente a crassa entre a ponte e o refrão, de experimental a pop na pausa entre duas semi-fusas. Até pode dar-se o caso de não se apreciar a música de Apocalypse, Girl, o último disco de Jenny Hval – não se pode é dizer que esta norueguesa é convencional. Nem sequer se pode dizer que é exclusivamente música: estudou artes performativas, escreveu um romance e colabora regularmente com a imprensa. Olha-se para os títulos dos discos (Viscera, de 2011, Innocence Is Kinky, de 2013, Apocalypse, Girl agora) e percebe-se que com Jenny Hval não se trata só de fazer canções. As canções têm de ser embrulhadas num conceito. Porque é daí que ela vem – da arte conceptual.

“Não sei se há opção entre fazer música e as outras artes”, diz Jenny ao telefone. A vida dela mudou nos últimos tempos, com a edição de Apocalypse, Girl pela óptima editora americana Sacred Bones. A atenção redobrou, a crítica passou a olhá-la demoradamente. Ainda assim, o recente êxito não a tornou numa pessoa afectada e conversar com ela é um exercício bastante simples. “É estranho, porque estudei artes performativas e no curso havia escrita criativa, teatro, pintura. Experimentei tudo menos música, porque não havia. E agora é o que faço.”

Na verdade não é assim tão estranho: "desde pequena” que Jenny Hval anda nisto. Foi vocalista de uma banda gótica, o que é vagamente assustador, e durante os anos da universidade (que fez em Melbourne, na Austrália) voltou a cantar. “Fiz muitos projectos colaborativos, fiz trabalhos de escrita e de performance, mas penso que a partir de agora vou dedicar-me só à música”, anuncia. Faz sentido: lançou o primeiro disco, sob o nome Rockettothesky, há nove anos. Mas quando se ouve a deliciosa Why this?, sexta canção de Apocalypse, Girl, não se imagina que foi longo o caminho que trilhou. Why this?, com o seu órgão e a sua voz suave, é quase pop. E ela nunca foi muito pop.

“Eu queria destruir o que sempre achei que era ser um artista”, explica ela a dada altura. Aproximar-se do registo canção, escrever um disco mais pop, cumpre então essa missão? Jenny responde sem sombra de assombro: “Eu sempre me achei uma artista menor. O que me dava liberdade, mas ao mesmo tempo me fazia falar apenas sobre coisas pequenas, nunca sobre coisas grandes." E o que é que isso tem a ver com Apocalypse, Girl? “Bem, se este disco soa como soa é porque agora penso em grande." Pausa. “Dificilmente consegues falar de algo maior do que o apocalipse."

A última frase é humor. Apocalypse, Girl não tem um som “grande”, pelo menos não no sentido de uns U2 ou de uns Chemical Brothers. Antes pelo contrário: é um disco extremamente bem torneado, de silhueta esguia, sem celulite mas também sem magreza excessiva. As batidas estão sempre bem colocadas, há quase sempre uma melodia de órgão que agarra, e o resto é a garganta de Hval a fazer harmonias. Aqui e ali este apocalipse raia o ambiental e ouvem-se harpas e coros ou cordas. Mas estes refrães bem medidos nunca explodem. Pelo menos não no sentido de pôr um estádio aos saltos.

A grandeza está no tema – que, em última instância, é o capitalismo, mesmo que à primeira pareça ser a sexualidade. E quando dizemos à primeira referimo-nos logo à primeira canção, Kingsize, cujo título deve ser revelador para os mais atentos. “Não acho que o disco seja propriamente provocador”, retorque de imediato Hval, que já deve estar farta de ouvir comentários acerca das suas letras. Aliás, recentemente, numa entrevista, admitiu isto mesmo: “Tenho a impressão de que as pessoas inicialmente reagem à franqueza ou à natureza visceral das minhas letras – as partes marotas – e só depois, com o tempo, é que se apercebem do quadro completo."

Talvez por isso ela diga que Apocalypse, Girl “só é provocador se se achar que certas palavras são provocadoras": "Se soa carnal, é porque eu ouço o mundo assim. Mas as canções sexuais são uma crítica ao capitalismo, se ouvires com atenção – porque o capitalismo sexualiza tudo." Jenny Hval ainda oferece mais uma explicação para a reacção que as suas palavras provocam: “Mesmo quando escrevo sobre coisas íntimas, não é sobre mim, é sobre o mundo. Isso talvez torne as palavras provocadoras porque escrevo o que vejo e digo o que vejo de um ponto de vista íntimo."

Descaradamente pop
Calma, não se assustem – é verdade que isto pode soar um pouco académico, mas Apocalypse, Girl está acima do seu próprio discurso. Ou por outra: por mais interessantes e pertinentes que as palavras sejam, é o lado musical que cativa.

“Quando decidi que ia abordar assuntos grandes, comecei a escrever refrães pop, mesmo antes de ter letras”, confessa Hval. Parecia-lhe que um refrão pop era a única forma de falar destes assuntos. (Uma estratégia que resultou com Jarvis Cocker.) “Há coisas que antes eu não era capaz de fazer, por medo de me tornar banal, mas que desta vez queria mesmo experimentar."

Percebe-se o que ela quer dizer quando se ouve That battle is over, com os seus órgãos a reverberarem e a batida lenta por trás. É sexy, é ritmicamente astuto, lembra um pouco os Massive Attack – tudo pop, descaradamente pop. “It’s biologyit’s my own fault/ it’s divine punishment”, canta ela, numa das faixas mais bem-educadas do disco. O tema anterior, Take care of yourself, partia de uma simples frase de teclas e ia animando lentamente, naquele balanço opiáceo que (de novo) lembra o som de Bristol. “Quando o [produtor] Lasse Marhaug chegou, e como somos ambos fãs de cinema, o disco tonou-se mais cinemático, cheio de texturas. Fomos do disco original que eu tinha escrito para toda uma outra coisa. Cada decisão que tomámos, tomámo-la no sentido de aproximar o som da qualidade sensual das letras."

Disso não haja dúvidas: Apocalypse, Girl (a vírgula não está lá por acaso) soa um pouco como a banda-sonora de uma peça de teatro íntima, em que – apercebemo-nos depois – a intimidade serve para falar de outras coisas. Ao fim e ao cabo, quantos mais refrães pop temos em que se cante “I can consume what I want, now/ consume what I want”?

O disco, de resto, acabou por ser construído de uma forma curiosa: “Lasse dizia: ‘Devias ter uma harpa nesta canção’, e vinha um harpista. Depois o harpista trazia um amigo que tocava um instrumento. Cada música trazia alguém e íamos adicionando."

Seja lá como for que tenham posto Apocalypse, Girl em pé, de repente Jenny Hval está a ser falada, interpretada, qualificada. “Para quem só ouve rádio, é capaz de ser um disco estranho. Para quem só ouve vanguarda, é capaz de ser demasiado pop. Para mim isso não interessa – é boa música", pondera a nossa norueguesa. O que não esperem é que ela de repente tente facilitar e acabe por tornar-se uma estrela pop: “Não tenho interesse nenhum em ser famosa. Agradeço a atenção, mas isto para mim chega. Se puder pôr as pessoas a pensar já fico contente."

Sugerir correcção
Comentar