Mais do que notas, Wayne Shorter toca a curiosidade pela vida

Esta quarta-feira à noite, Wayne Shorter sobe ao palco do Centro Cultural de Belém com o quarteto a que ultimamente recorre para fazer uma música atenta a tudo o que se passa à sua volta. Figura fundamental na história do jazz, participante em várias revoluções musicais, continua a acreditar que toca para que o mundo se pareça mais com o seu ideal.

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Wayne Shorter dr

Há que escutar com atenção. A música, pelo menos aquela que Wayne Shorter toca, não soa apenas a música. Existe como extensão de tudo quanto rodeia o saxofonista octogenário e existe, antes de mais, como formulação do desejo daquilo que Shorter gostaria que o mundo pudesse vir a ser. São notas movidas por uma vontade de mudança, por um impulso de transformação. “A música que tocamos não é sobre a música”, afirma Shorter ao PÚBLICO. “É sobre tudo o resto. Sobre coisas que ainda estão por contestar e reclamar pelos seres humanos. Não pode ser sobre sentirmos gratificação pessoal instantânea. Não pode ser sobre ‘Vejam quão bem toco o meu instrumento’. Não pode ser eu, eu, eu, eu e eu. Não pode.”

De facto, por muito que o nome histórico de Wayne Shorter atinja uma cotação estratosférica e seja o recordista da escolha da Downbeat, por dez anos consecutivos, como o mais importante saxofonista soprano em actividade, as constantes revoluções musicais em que inscreveu o seu nome tiveram sempre um sentido colectivo. Desde que se juntou aos notáveis Jazz Messengers de Art Blakey até à sua participação no segundo grande quinteto de Miles Davis e na formação com que o trompetista descobriu o advento da electricidade, e à fixação do paradigma do jazz de fusão com os Weather Report, a biografia de Wayne Shorter é um lembrete constante de quanto as barreiras no jazz mudaram de sítio graças ao seu insaciável espírito inventivo.

Esta quarta-feira, no Centro Cultural de Belém, actuará com o mesmo quarteto – Danilo Pérez no piano, John Patitucci no contrabaixo e Brian Blade na bateria – com que voltou, em 2013, a editar pela Blue Note, passados 43 anos. Without a Net, gravado quando Shorter se aproximava velozmente da marca das oito décadas de vida, é um disco notável, alimentado por uma abordagem fogosa do saxofone que apenas acusa a idade na medida em que a sua intervenção é doseada de forma sábia e com toda a sua história a empurrar o músico para a frente – nunca para trás.

“Há quem diga que há um processo de ESP a acontecer entre nós e que encontrámos uma forma de comunicar e de fazer muita coisa que é imprevisível”, comenta Shorter em relação ao quarteto. Mas o peso da expressão ESP [acrónimo para percepção extra-sensorial] na sua boca é bem mais pronunciado. Shorter di-lo assim, no meio de uma frase sem sublinhar o termo, como se quisesse apenas referir-se à cumplicidade construída a quatro com propriedades do campo paranormal, mas o facto é que “ESP” é igualmente o título do tema com que brindou Miles Davis na sua chegada ao emblemático quinteto do trompetista. ESP, aliás, seria tema de abertura e título dessa obra-prima de Davis lançada em 1965. Shorter deixaria ainda a sua marca em dois álbuns obrigatórios em qualquer discografia – In a Silent Way e Bitches Brew – e que antecipavam uma posterior guinada de Miles na direcção do funk e do rock.

O talento de Shorter mostrara-se de forma tão fulgurante que, em 1958, ao terminar o serviço militar, tornou-se objecto de disputa entre Art Blakey e Miles Davis. Desde logo porque, convidado por John Coltrane a acompanhá-lo até ao apartamento para terem uma conversa, percebeu que Coltrane o escolhera como sucessor na formação de Miles. Só que Lee Morgan fora mais rápido a puxá-lo para os Messengers. A partir daí, Davis começou uma marcação cerrada que só terminaria quando finalmente conseguiu atraí-lo para o seu novo quinteto. “Uma vez”, recorda Shorter, “estavámos a ensaiar com o Art Blakey e o telefone tocou durante o ensaio. O Lee Morgan atendeu e disse muito alto, enquanto nós continuámos a tocar, ‘Ei, Wayne, é o Miles!’ O Art parou imediatamente de tocar. Desde esse momento em que desliguei o telefone e até hoje, não consigo lembrar-me que tipo de diplomacia usei para falar com o Miles à frente do Art. Enquanto isso, o Lee Morgan ficou num canto a rir-se.”

Depois das negas iniciais, justificando-se perante Miles Davis de que “ninguém gosta de um traidor”, o cerco fechar-se-ia em torno de Wayne Shorter em 1964, juntando-se a uma formação imaculada a que pertenciam ainda Ron Carter, Herbie Hancock e Tony Williams. A consciência de estar a embarcar num momento de viragem histórico, em que o jazz se encaminhava para a electricidade e perseguia e energia do rock e o balanço do funk, era demasiado palpável para que pudesse sequer tratar-se de uma subtileza.

“Nós sabíamos que estávamos a avançar para território virgem”, confessa. “Quando se sente algo de tão forte e temos a certeza daquilo que fazemos, nessa altura temos uma curiosidade não apenas pela música mas também pela vida.” Nesse período, em que ofereceu a Miles EST mas também temas charneira para o trompetista como Nefertiti ou Pinocchio, a música, como Shorter defende, era tudo aquilo que borbulhava à sua volta, um jorro que naturalmente dava expressão a um conjunto de referências de que faziam parte leituras, relações com a espiritualidade, tudo o que se infiltrasse no dia-a-dia. Daí que quando Miles lhe perguntou “Wayne, alguma vez te cansas de tocar música que soa a música?”, nem esperou pela resposta e o próprio Miles acrescentou de imediato “Percebo o que queres dizer”.


Desafiar o desconhecido

“Quando se ouve Ravel, Debussy, Shostakovitch ou Stravinsky ouve-se uma curiosidade pela vida”, reforça Shorter. “Só que essa é música ausente da rádio, onde só há espaço para o mercado do som – o pum-pum-pum [simula um bombo persistente e repetitivo], algum hip-hop e a Katy Perry.” Não se estranha, portanto, que no início dos anos 70, ao formar com Joe Zawinul e Miroslav Vitous os Weather Report, a música do grupo fosse pensada em termos linguísticos ou naturalistas. Queriam imaginar a música como pontuação numa oração, não fazer parágrafos, dispensar o uso de maiúsculas no arranque das frases, baralhar as regras da escrita. Mas também enunciar propósitos como tentar soar a um vale e a uma montanha, a um vulcão.

No fundo, nessa altura como hoje, Wayne Shorter queria “desafiar o desconhecido, negociar e estabelecer um diálogo com o inesperado”. Mais uma vez, a música corre num mesmo fluxo do que o mundo lá fora, quando declara que essa negociação se faz nos mesmos termos em que os líderes das nações de todo o planeta o fazem. “Só que tem de se fazer de uma forma que não envolva fórmulas e estratégias ancoradas no passado”, avisa. “Por isso é que os jovens têm de estudar e saber História, para não estarem destinados a repetir tudo o que já aconteceu.” Tanto assim, acredita, que a linguagem da improvisação impregnada na essência daquilo que se entende por jazz “é um assunto que está a acontecer no universo dos astrofísicos, dos cosmólogos e em todo o tipo de ciências”. A arriscar alguma definição para jazz, Wayne Shorter resume o espírito da sua música na frase “I dare you”. “Significa fazer desaparecer os limites”, descodifica.

A resistência a esses limites faz parte da viagem e é, na verdade, uma outra forma de propulsão. Se quando começou a tocar os radialistas diziam que o jazz soava a galinhas desorientadas, que caminhavam sem qualquer sentido, Wayne Shorter lembra que “a resistência é usada pelos aviões para descolar”. “Quando uma editora não quer lançar as minhas composições mais criativas por serem complexas, agradeço sempre por me proporcionarem a resistência de que preciso para crescer.” O pior, reconhece, seria soar a velho, soar a passado. O pior seria que uma discussão familiar à hora do jantar não se ouvisse naquilo que toca. A sua música não pára. Hoje não é igual a ontem.

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