Luzes e espiritualidade num quadro de Josefa de Óbidos

A modulação lumínica — interpretação plausível, por parte dos pintores, das íntimas relações entre sombra e luz — assumiu altíssimo grau de exigência nas artes do século XVII. Desde o realismo de Caravaggio ao naturalismo dos bolonheses Carracci ou ao requintado tenebrismo dos pintores de Sevilha e Madrid, uma nova figuração da luz despontou na paisagem artística de Seiscentos. Em reacção aos excessos artificiosos e antinaturalistas do Maneirismo declinante, a nova geração de circa 1600 tonificou a exploração do chiaroscuro no intimismo à la candela, alegorias à vanitas, postrimerías moralizantes, bodegones, retratos, vedute, figurações de santos ou cenas da Escritura.

A lição da luz natural que, a partir de então, passa a modelar as superfícies e revelar os mistérios das formas, que controla os efeitos da observação e se torna difusa na definição dos mais ínfimos pormenores, ou ganha força sobrenatural quando deseja exaltar glórias angelicais e arrebatamentos de alma, é o grande traço inovador da Pintura nesse tempo barroco que o século XVII assumiu por inteiro. Um tempo de contrastes, também: espírito e matéria, luz e sombra, sacralidade e mundanismo, fé e luxúria, amor divino e carnal, ora se associam ou se enfrentam em requintes de touche e ousadias ao natural, numa senda incessante pelas poéticas da luminosidade… “Se de huma parte está branco, de outra há-de estar negro, se de huma está dia da outra há-de estar noite, se de huma dizem luz, da outra hão-de dizer sombra”, escreveu o padre António Vieira em 1665 no Sermão da Sexagésima, referindo-se ao espectro da aplicação do claro-escuro como fenómeno com implicações artísticas.

Em Portugal, este esforço de inovação também conheceu fortuna. Por via da sua passagem por Sevilha, o pintor obidense Baltazar Gomes Figueira (1604-1674) aprendeu nos círculos de Francisco Pacheco e de Zurbarán essa apetência de “fazer experiencia de noite à candea, aonde se verà claramente o que he luz, & o que he escuro” (como dizia Filipe Nunes na Arte Poetica, e da Pintura) a fim de saber “donde dá a luz na figura” e “relevar” as formas da realidade tangível. Uma das obras mais surpreendentes desse exercício ocorreu cerca de 1650, quando a filha de Baltazar, Josefa de Ayala e Cabrera (Sevilha, 1630-Óbidos, 1684), à data estudante em Coimbra, pintou a Santa Maria Madalena em êxtase místico que aqui se analisa. Trata-se de um notabilíssimo cobre com iluminação a la candela, onde a figura de Madalena centra um precioso notturno, testemunho do saber digerido sobre as propriedades da luz.

Nessa verdadeira obra-prima, a jovem artista resolveu com perícia de miniaturista e acertos de modelação os magnos problemas lumínicos que se lhe ofereciam em termos compositivos. Josefa procurou destacar tanto o intimismo da cena, que decorre na penumbra de uma gruta, como a sua profunda carga espiritual, adequada ao objectivo de servir a devoção particular — que eram, afinal, os generalizados ditames contra-reformistas que se viviam. Peça destinada ao culto doméstico, a pinturinha acentua os traços frágeis e ao mesmo tempo convincentes da pecadora convertida. Reconstitui (e como que “congela”) o acto de arrebatamento místico da santa perante a imagem de Cristo crucificado, pousada sobre uma caveira numa espécie de mesa onde também se encontram um livro de orações e um cilício de penitência. São visíveis neste cobre, exposto no Museu Nacional Machado de Castro, em Coimbra, o primor do desenho, o naturalismo das vestes, a transparência da matéria pictórica, os requintes de iluminação do corpo e os preciosismos dos valores acessórios. A pintura, que mede 228x184 mm, está assinada Josepha d’Ayalla e ostenta no reverso uma inscrição onde se lê Sr. Baltasar Gomez Figueira/Coimbra/chapas de cobre, sintomático de que Josefa utilizou um suporte cúprico cedido por seu pai e mestre. Foram anos de formação, os que decorrem de 1646 a 1653, em que Josefa, recolhida no convento de Sant’Ana de Coimbra, se habilitou, sob a batuta paterna, no desenho, na gravura e na caligrafia, abriu estampas, pintou miniaturas. Continua a causar admiração, todavia, a precocidade com que atingiu tal grau de perícia, expressa neste cobre.

As zonas iluminadas pelo artifício da luz que irrompe da candela à direita, pólo orientador de leitura do quadrinho, destacam o corpo da Madalena de braços abertos, esbatendo a penumbra de mistério em nuances onde o sobrenatural se faz eco visível, e definindo os valores plásticos da caveira descarnada, símbolo de meditação sobre as vãs vaidades, o cilício, expressão punitiva de arrependimento, e a imagem de Cristo na cruz, modelada em intenso claro-escuro, assente num equilíbrio instável sobre o crânio descarnado. Fruto da intensa definição dos valores lumínicos, a pecadora arrependida assume o seu papel-símbolo da lascívia reconvertida pela fé. Os paralelos para esta expressão de naturalismo lumínico aproximam o cobre de Josefa da pintura nórdica de mestres como Seghers, Schut ou Van Thulden, sem esquecer que, como disse com propriedade Luís de Moura Sobral, esta Madalena arrependida tem palpitações de vigoroso chiaroscuro que superam a obra paterna e a transformam quase num epígono do tenebrista francês Trophime Bigot.

Josefa conhecia alguma coisa sobre a natureza física e o poder ondulatório da envolvência da luz sobre a matéria, a sua materialidade corpuscular (tão bem definida, alguns anos mais tarde, pelo filósofo Isaac Newton) e as trajectórias abertas pelos fenómenos ópticos. O facto de Baltazar possuir na casa da Rua Nova em Óbidos uma espécie de “câmara escura” teria permitido a Josefa estudar as infinitas possibilidades ópticas oferecidas pela luz, onda electromagnética dotada de intensidade, frequência e polarização, capaz de gerar um comprimento de onda a cujo efeito o olhar humano é especialmente sensível. Uma obra como a Santa Maria Madalena dá óptimo testemunho dessa sedimentada base de conhecimentos e assegura lugar não despiciendo à arte portuguesa de Seiscentos nesse panorama generalizado de invenção pictural das luzes que se desenhava além-fronteiras.

Vítor Serrão é historiador de arte e professor catedrático na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. É autor de numerosa bibliografia no campo da Teoria da Arte, nos estudos de Património, e sobre arte portuguesa dos séculos XVI e XVII, sendo o seu livro mais recente Arte, Religião e Imagens em Évora no Tempo do Arcebispo D. Teotónio de Bragança, 1578-1602 (Fundação da Casa de Bragança, 2015)

 

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