Luz apagada

Ressonâncias crespusculares no título original, combate a prometer metafísica. Mas é um filme “estragado”, como se lhe tivessem imposto um formato que sufoca a plenitude da “viagem”.

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Nicolas Cage como patriota americano, com prótese de orelha cortada, em luta contra o terrorismo: eis uma abertura às possibilidades grandguignolescas para que tende o actor e que poucos como ele aguentam sem se sacrificarem de forma irreparável em público — tiveram até caução artística no Coração Selvagem de Lynch (1990).

Mas é um facto que não deve ser fácil encontrar hoje possibilidades para temerários cabotinos assim. Ora, abrir o peito à turbulência foi coisa do mainstream americano dos 70s. E Paul Schrader, argumentista (Taxi Driver, O Touro Enraivecido...) e realizador (A Rapariga da Zona QuenteAmerican Gigolo...) teve responsabilidades. Hoje deixou de ser tolerável. Mas o encontro entre o actor e o realizador abria possibilidades ao colocar assim as coisas: a América e o fundamentalismo são religiões com violência dentro. Isso é hoje raro e intrépido. E foi turbulento.

Eis Evan Lake (Nicolas Cage), condecorado agente da CIA que, antes da reforma, descobre o que sempre suspeitou, que a sua bête noire, o terrorista Muhammad Banir (Alexander Karim), que no passado o torturou (a orelha...), está vivo. Quer o agente quer o terrorista têm doenças terminais – transborda-se aqui. Contra tudo e contra todos, Evan lança-se na sua derradeira missão. George C Scott, dinossauro devoto do seu puritanismo na Rapariga da Zona Quente (1979), ia até ao fim do mundo para encontrar a filha que entrara para o porno. (Ao fazer cinema Schrader, educação calvinista, violentou o seu mundo.)

Vingança ao Anoitecer/Dying of the Light:

 ressonâncias crespusculares no título, combate a solicitar 

dureé

 e a prometer metafísica. Mas é um filme “estragado”, como se lhe tivessem imposto um formato que sufoca o 

épanouissement

: a plenitude da “viagem” é amolgada pelas convenções do 

thriller

, de que Schrader aliás se desinteressa ou para as quais não quis ter jeito. A 

performance

 de Cage perde em veemência: parece estar sempre a ser interrompida e só a espaços encontra espaço; mantém-se a solidão – é um filme perdido.

Foi retirado ao realizador, que se viu impossibilitado de assinar a montagem, o que o levou, juntamente com Cage e com o produtor executivo (Nicolas Winding Refn, que inicialmente deveria realizar), a organizar silencioso protesto online no ano passado: mostrou-se em fotos com t-shirts em que se dizia contratualmente proibido de maldizer a versão lançada nas salas mas dela distanciava-se. Um “filme maldito”, um gesto – tardio – de enterrar o legado dos 70s? Ou Schrader já estava perdido? Questão complicada, porque ao longo do seu trabalho o cineasta nunca se revelou coriáceo como o argumentista. A anterior longa, The Canyons (2013), colaboração com Breat Easton Ellis, mostrava um encontro de iguais, pelo menos no fascínio pelo desvio (Schrader sempre de olhos mais aber­tos para a transcendência...), mas incapazes de escapar à redundância e de encontrarem alternativa narrativa à altura. Era lamentável. Sobre Vingança ao Anoitecer, Lankester Merrin, num artigo na Film Comment de Dezembro, contava ter visto a versão de Schrader. Não encontrou diferenças fundamentais em relação à versão estreada.

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