Lourdes Castro: "A minha pintura é esta: o viver, o estar cá"

Foto

Lourdes Castro está em Serralves, numa exposição antológica partilhada, como a vida, com Manuel Zimbro. A sombra e a luz.

No Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no Porto, é hoje inaugurada a exposição antológica "À luz da sombra", que reúne trabalhos de Lourdes Castro (1930, Funchal) e Manuel Zimbro (1944-2003). A mostra, comissariada por João Fernandes, percorre a obra de dois artistas que partilharam parte das suas vidas: "A gente fez tudo juntos, nem que só fosse fazer o almoço para o outro", nota a madeirense, numa conversa acerca de sombras em que também se fala de amigos, de livros, da natureza.

Lourdes Castro é produtora de uma vasta obra atravessada sobretudo pelo tema da sombra, e que pode ser lida a partir da sua permanente transformação. A sua actividade artística inclui a produção da revista KWY, 12 números realizados em Paris, entre 1958 e 1963, em colaboração com René Bertholo. A publicação, que nunca terá mais de 300 exemplares, incluiu outros nomes quer na sua concepção, como Christo, Escada, João Vieira e Jan Voss, quer no elenco dos convidados para cada edição. No início dos anos 60, surgiram os objectos: acumulações de "tralhas que já não servem para nada", coladas sobre antigas telas e pintadas da cor do alumínio. Sucedem-lhes as sombras projectadas e os contornos: retratos de amigos realizados sobre tela ou em coloridos e recortados plexiglass. Mais tarde, no Verão de 1968, surgiram as "Sombras deitadas" bordadas em lençóis. Na Madeira, em 1972, Lourdes Castro irá reunir "O grande herbário de sombras": 100 sombras de espécies botânicas "tomadas directamente ao sol, sobre papel heliográfico". O "Teatro de Sombras", já experimentado desde 1966, irá assumir um papel relevante na actividade da artista a partir de uma estada em Munique, entre 1972 e 1973: "Durante o espectáculo eu sou a sombra e o Manuel é a luz." Tudo na direcção do nada, situação tornada visível através de "Peça", um objecto desenhado em colaboração com Francisco Tropa para a Bienal de S. Paulo, em 1998.

Quanto nasceu a ideia desta exposição?

Quando fiz as "Sombras à volta de um centro." Um dia, o João [Fernandes] foi à Madeira falar-me numa exposição com os plexiglass, os lençóis, aquelas coisas todas, mas nunca uma retrospectiva exaustiva.

Porquê "nunca uma retrospectiva"?

Porque é muito. Cansava-me eu, cansava-se o João, cansava-se toda a gente e mesmo as pessoas para verem o que se tem nas gavetas, os livros, as coisas todas que fizeste durante tantos anos... é demasiado para uma exposição e mesmo para um museu. O João dizia: fazemos uma exposição mais pequena das coisas do Manuel [Zimbro]. Comecei a pensar nisso: a gente fez tudo juntos, nem que só fosse fazer o almoço para o outro.

Cada exposição era partilhada...

O Manuel ajudou-me muito: conhecemo-nos, eu estava no teatro; portanto, já foi mesmo a dois: a sombra e a luz.

Conheceram-se quando?

Em Paris... 72, 73. Depois fomos para Berlim.

A Lourdes nasceu em Dezembro...

Sim. Sou Sagitário, mas depois há o ascendente que conta.

Qual é o seu?

Peixes. Sou bicho, sou animal, sou gente, tenho uma flecha e ainda sou peixe: sou da água.

A flecha...

Estou sempre a ver para a frente.

O Manuel Zimbro tem um texto intitulado "A Sombra da Flecha", escrito em 1992... 

O Sagitário é metade cavalo, metade homem - um centauro -, e depois a flecha é a direcção para a frente. Estou sempre a prever coisas. Tenho esta tendência, mesmo para esta exposição. É o aceitar naturalmente as coisas: se tu souberes onde é que andas e o que é que estás a fazer. Não é? Nós pertencemos ao universo, não estamos fora. A astrologia tem tanta importância como outra coisa qualquer. No fundo, se se separou as coisas foi para as estudar.

Pegando na ideia da flecha, um dos livros que a marcou foi "Zen e a Arte do Tiro com Arco", de Eugen Herrigel...

Às vezes são bóias de salvação. Quando o Ocidente já não estava a responder ao que se perguntava, foi muita gente ao Oriente. E voltou; como o senhor Herrigel, que esteve lá, estudou e aprendeu o japonês. Essa troca vem responder a coisas, como a religião: são respostas que a um certo momento batem certo, que nos aliviam, que nos ajudam. Na Madeira, estive no Colégio Alemão desde o jardim-de-infância: foi a minha avó que me ensinou a ler, a avó da Praia Formosa. Ela já sabia uma coisinha de alemão, porque o professor de piano lhe ensinou. Ela também sabia inglês e francês: foi a primeira aluna do liceu da Madeira. Nessa altura, a gente não percebia muito, a avó convenceu os meus pais que os pequenos tinham de ir para a escola alemã, que dava uma certa organização. Ela lá sabia, porque era professora.

Tudo isto levou-a a ler o livro...

O Colégio Alemão fechou quando começou a guerra, no início dos anos 40, sou pré-histórica... Ainda me lembro das professoras a tricotar coisas para os soldados. A minha avó disse: "Os pequenos devem continuar..." Prossegui as lições com uma senhora alemã, uma botânica que vivia sozinha e dava lições particulares. Tinha estado na América do Sul e um quarto cheio de papagaios e um tucano. Depois, uma sobrinha dela, que estava na Alemanha, mandou-lhe um livro que tinha acabado de sair. Ela leu-o e disse-me: "Empresto-te". Era o "Zen e a Arte do Tiro com Arco", do Herrigel. Li-o em alemão: "Enquanto não fores a flecha..." Tens que ser tu com o que fazes; se não, há separação.

Continuou a alimentar esse interesse pelo zen?

Não só o zen, mas também a Índia. O [Rabindranath] Tagore, que também li em traduções alemãs... todo aquele ar que vinha de lá, sem ser os descobrimentos, o que vem na História.

Foi alguma vez à Índia ou ao Japão?

Nunca fui. O Japão às vezes é como se lá estivesse... voltando um pouco atrás, o João tinha-me dito que se fazia uma exposição do Manuel, com as coisas dele, a "História Secreta da Aviação." A gente sempre fez juntos; às vezes, pode não vir o nome no catálogo, mas foi ele que fez o desenho deste [o catálogo de "Além da Sombra", CAM, Gulbenkian, 1992], escreveu o texto e escolheu os fragmentos dos "Álbuns de Família". A "Montanha de Flores" [1988-...], foi o Manuel que fez a instalação. É mágica, eu nunca teria chegado ali: punha as florinhas, caíam as pétalas. Disse ao João: a exposição tem que ser Lourdes e Manuel ou Manuel e Lourdes, a luz e a sombra; não se pode separar. Até bebemos um champanhe nesse dia. Tinha uma garrafa pequenina e fizemos um brinde: pronto, a exposição está feita. E o João disse: "Com certeza".

Não posso deixar de lhe perguntar o que significam os caracteres japoneses impressos na sua t-shirt ...

É o "Sutra do coração" [um dos textos fundamentais do Budismo Mahayana]. Tenho um amigo na Madeira que me diz: "Lourdes, quando pões essa t-shirt é como a gente na escola quando punha a t-shirt para os exames". O "Sutra do coração" é muito importante. Há muitos sutras no "Prajnaparamita" [escrituras budistas que tratam do tema da perfeição da sabedoria; a mais antiga foi escrita por volta do ano 100 a.C.]. Não sou supersticiosa... cada um de nós tem sempre assim umas coisinhas... uma pedrinha que põe no bolso. O sutra é uma coisa que protege, "c'est ça". Tens uma coisa para o frio [um casaco] e depois pões algo que protege.

Quando é que começou a realizar os "Álbuns de família"?

Quando comecei as sombras - há as silhuetas no século XVIII e depois sabes vagamente umas coisas, já viste. São, no fundo, para perceberes onde é que tu estás e o que é que estás a fazer. Acho que em 1965 acabei o primeiro, mas foi em 1963 que comecei a colar naqueles álbuns.

O que coloca nesses álbuns?

É pena, na exposição só vai estar uma página aberta. Se o chamei "Álbum de família", é como se fosse uma família nossa, onde tens os primos chegados, os irmãos, os amigos: depois, há os que estão mais longe, mais afastados. No fundo, só podes ver em ti e é aí que deves chegar; mais nada.

Continua a fazer "Álbuns de família"?

Continuo, porque ainda me aparecem coisas.

Quantos volumes já realizou?

34... O Fidel de Castro, quando fumou um charuto da Holanda, disse: "Es paja", é palha. Há coisas que são palha; mas é bom ver-se que nos álbuns há alguma palha.

Os álbuns são só acerca de sombras?

O Arp está lá, mas não é com uma sombra. As formas dele já são muito puras, porque, no fundo, ninguém sabe o que é a sombra... O senhor Goethe, na teoria das cores, fala em sombra colorida. E depois fazem-te companhia, tu não estás sozinha e percebes melhor. Ou tu és um pintor primitivo, e estás no teu cantinho, ou então, se estás de olhos abertos, trata de aprender tudo o que há por aí.

No fundo, para si, a sombra não tem uma conotação negativa...

Sei que tirei as sombras da sombra. Dei-lhes corpo, porque fiz os plexiglass, mas este é transparente, tem menos matéria. Os lençóis, não os ia fazer em plexiglass, porque a gente não se deita em cima desse material e o plástico também não é agradável... Não se trabalha só com a cabeça: trabalho muito com os olhos e com aquilo que se ouve: trabalha-se com tudo.

Os plexiglass são sobretudo retratos de amigos...

Eles tinham de me emprestar a sombra. Tinham de estar quietinhos, mas às vezes era difícil.

Começava por realizar um desenho?

Sim, sobre papel. Depois "passava-os a limpo" para o plexiglass. Com o sol é muito difícil também, porque a sombra mexe imenso. Se pões um papel, muda imenso. No fundo, a sombra é a parte imaterial das pessoas: o espírito, a alma...

No caso dos lençóis, ao contrário do que acontece com os plexiglass, os corpos retratados são an??nimos...

Ao princípio, nos plexiglass, tomei a decisão de só passados dez anos dizer quem é, porque senão começavam: "está parecida", "não está parecida", "o nariz é tal e qual". Nos corpos, como é nos lençóis, é mais íntimo: não ponho o nome, há o respeito pelas pessoas. São amigos que disseram "ok, a gente deita-se; é muito confortável." Estavam mais quentinhos: era no chão do ateliê. Punha o papel, fazia o contorno, depois passava para o pano e bordava. Foi muito bom, depois de trabalhar com a serra eléctrica, estar ali sossegada: lembro-me estar a ouvir os carros. Foi na Rua des Saints- Pères [em Paris]. Depois voltei a pô-las em movimento: o teatro.

O "Teatro de sombras" são, de facto, três trabalhos distintos...

O primeiro programa eram três coisinhas pequeninas: "Pic-nic à sombra", "Contorno" e "Dia e noite"; o segundo programa, "As cinco estações"; e o terceiro programa, "A linha do horizonte". Não tinham história: é como um quadro, uma coisa chama a outra. O fio condutor era a transformação. Eram três coisas, depois passamos a um assunto só, sem intervalo, porque quando tu vês as sombras é tal o envolvimento, a magia, que é uma pena ter intervalo. "As cinco estações" e a "Linha do horizonte" duravam uma hora.

Era a única pessoa em cena?

Sim, porque eram tantos ensaios... Estávamos os dois em casa, portanto fazia-se a qualquer hora: era quase um ano para fazer uma peça nova. Como é que podias estar com outra pessoa a exigir dela tudo o que podes exigir a ti ou a quem está contigo? Depois de ter contratos com teatros, entras na galeria, não é com desprezo, mas entras muito mais à vontade. Não vais pedir nada: é muito bom. Liberdade: o manter-se desapegado, é muito importante...

O seu último trabalho, "Peça" (1998), foi feito em colaboração com o Francisco Tropa...

O que estou a fazer agora, o filme da Catarina [Mourão] toca nisso...

O cuidar do jardim?

É aquilo tudo: as árvores... O filme mostra um bocadinho. Depois do "Teatro de sombras" é difícil fazer coisas, porque era aquela hora efémera. Como é que posso estar a fazer assim coisas, materialmente, que durem, quando o "Teatro de Sombras" passava? Foi nessa altura que mudamos de casa, que fomos para ali [Caniço, Madeira]...

Quem projectou a casa?

O Manuel desenhou casa toda. O Pedro [Morais] também ajudou, o irmão do Pedro também e o Manuel Amado deu o plano para fazer a chaminé. O Manuel desenhou tudo conforme o nosso viver dentro de casa: um ateliê para um, outro para outro e tudo aberto. As pessoas perguntam: "A Lourdes tem pintado, tem trabalhado muito?". "Tenho trabalhado muito." O que é trabalho? O que é não-trabalho? Tenho tanta coisa para fazer. A minha pintura é esta: o viver, o estar cá.

Há, na exposição, uma série de pedras com frases escritas pelo Manuel Zimbro...

Nós nunca demos prendas; se fazíamos uma viagem, podia-se trazer uma coisa maior, mas no Natal e isso tudo era um papelinho, uma coisinha. O Manuel uma vez deu-me uma pedra, em que escreveu: "Faltam quatro horas para a meia-noite". Foi a prenda de Natal.

Sugerir correcção
Comentar