Lisboa, estado de sítio

David Leavitt parece ter em mente demasiados temas para que esta história funcione com um mínimo de credibilidade — e a sua Lisboa em tempos de guerra parece de papelão, como um velho bilhete postal

Foto

Lisboa, Junho de 1940. Numa Europa a ferro e fogo, a capital portuguesa fervilha, arrancada ao seu torpor pela chegada contínua e caótica de refugiados que tentam escapar às perseguições nazis. A neutralidade (periclitante) de Portugal e a sua posição geográfica fazem do país o destino natural para o caudal incontrolável de fugitivos. Ao Rossio, a “praça nobre” da capital, afluem pessoas das mais variadas nacionalidades, culturas e classes sociais. Cruzam-se, confraternizam, desconfiam umas das outras, enquanto esperam que os navios com destino aos Estados Unidos atraquem no cais, dando-lhes a possibilidade de embarcar. Uns têm dinheiro, outros nem tanto, mas o dinheiro é (quase) tudo: a possibilidade de sobreviver, de mudar de vida, de contornar a burocracia, de manter um certo conforto, ou, simplesmente de ocupar os dias em excursões e repastos, numa tentativa de manutenção de uma certa normalidade. Não são turistas, não são agradáveis passeantes, é gente suspensa entre mundos, dilacerada por sensações e sentimentos contraditórios como alívio, medo, tédio, uma espécie de loucura, um desejo de aventura.

Neste clima tenso e irreal, dois casais de americanos expatriados, obrigados a deixarem para trás a sua vida na França ocupada, travam conhecimento na pastelaria Suíça — um ersatz do café de Rick, do filme Casablanca — e iniciam uma relação a quatro com todos os equívocos, arrebatamentos e desvios próprios de quem está longe, em terra estranha, e incapaz de imaginar o futuro. Iris e Edward Freleng vivem numa relativa abastança graças ao sucesso da co-autoria dos seus romances policiais. São boémios, sofisticados e não fazem grande distinção entre a realidade e os enredos que criam nas suas tramas ficcionais. Têm uma cadela chamada Daisy — como a heroína de O Grande Gatsby, de Fitzgerald — e habilmente conquistam as relutantes boas graças de Julia e Pete Winters, burgueses confusos e chocados com os recentes acontecimentos. De um momento para o outro, Pete e Edward iniciam uma tórrida relação, enquanto a frágil Julia cada vez se embrenha mais numa solidão depressiva e Iris tenta manter o marido, condescendendo e até favorecendo a sua aventura erótica. A narrativa vai-se desenrolando pela voz de Pete — o que é pena porque ele, um vendedor de carros, é o personagem mais banal da história: fica-se a saber logo no início que Julia morrerá e, para além das deambulações por Lisboa e arredores, das arfantes cenas de sexo com uma pitada de sado-masoquismo, dos pequenos-almoços na pastelaria, dos jantares em tascas, do regresso aos respectivos hotéis (ambos, ironicamente, com o odioso nome alemão Francoforte) e dos detalhes dos encontros dos dois homens, com passagem pela Exposição do Mundo Português, recentemente (e orgulhosamente) inaugurada, pouco mais acontece.

David Leavitt, um autor que aprecia devidamente as fontes históricas para a formulação das suas tramas, como já demonstrou em obras anteriores como O Escriturário Indiano, que se passa durante a Primeira Guerra Mundial, e com o polémico Enquanto a Inglaterra Dorme, com a Guerra Civil de Espanha como pano de fundo, está perfeitamente ciente de que os acontecimentos traumáticos que marcaram o século XX reformularam ideias, credos, geopolíticas e, principalmente, abalaram para sempre a psique humana. É estranho que, com ingredientes tão carregados de pathos e de intriga, acabe por escrever um romance frouxo, com personagens banais e estereotipadas — Julia, a que poderia ser mais interessante, é um cliché ambulante da judia deprimida e sombria, permanentemente ocupada a jogar cartas de adivinhação — e uma retumbante ausência de coesão narrativa.

David Leavitt é, também, um escritor hábil e seguro, conhece bem Lisboa, tem amigos portugueses — a historiadora Irene Flunser Pimentel, especialista neste período histórico, consta da lista de agradecimentos — e sempre confessou a vontade de utilizar a cidade como cenário de um romance. É penoso, por estas razões, que o romance falhe tão redondamente. E se é verdade que o país, e mesmo Lisboa, eram, em 1940, ainda lugares onde o tempo se detivera num provincianismo e num bucolismo arrasadores, próprios de uma nação fechada e ensimesmada, brutalmente arrancada do seu torpor pelos costumes “extravagantes” dos estrangeiros e pela algaraviada de línguas tão diferentes, esperar-se-ia mais do que referências às escapadelas eróticas na serra de Sintra, às vielas medievais, ao pastel de nata, ao fado e aos elevadores — usados como metáforas do casamento. De resto, o autor parece ter em mente demasiados temas para que esta história funcione com um mínimo de credibilidade: Lisboa pode ser lugar ideal para estranhos encontros e sórdidas intrigas nos anos da Segunda Guerra Mundial, mas, neste romance, a cidade parece feita de papelão, como um cenário de teatro, ou um velho bilhete postal. Os problemas do casamento surgem agudizados em situações-limite como a que estão a viver os seus protagonistas, só que as tensões entre os membros dos dois casais revelam-se em diálogos entorpecidos e em pormenores insignificantes. Não se percebe se o adultério, personificado pelos dois homens, é fruto do tédio, da situação instável ou de uma verdadeira atracção. Apesar de geradora dos melhores momentos da história, a urgência sexual que os obriga a usar um bordel no Cais do Sodré para os encontros, pela dificuldade em encontrar lugares numa cidade sobrelotada, é depois abandonada com a mesma ligeireza com que foi entabulada.

Num tempo de medos tão incomensuráveis, de desespero tão avassalador, os ecos do que aconteceu em Setembro desse mesmo ano no Hotel de Francia, em Portbou, na Catalunha, onde Walter Benjamin pôs termo à vida quando perdeu a esperança numa possível salvação, assombram a narrativa, apesar de tudo se diluir numa espécie de banalização e de ligeireza descomprometidas.

Quase no fim do livro, Leavitt tenta uma espécie de “redenção”, ao aventurar-se numa referência meta-ficcional colocando Pete a enumerar as “Dez Regras que o escritor novato deve seguir”, admitindo que quebrou todas elas. Compreende-se assim que o autor se reveja neste personagem e reconheça nele as suas próprias falhas. É bem possível que toda esta nonchalance estilística seja propositada, mas nem mesmo este acto de candura irónica e inteligente chega para salvar uma história que acaba por se perder em meandros tão enganadores e traiçoeiros como os das ruelas “típicas” de Lisboa.

Sugerir correcção
Comentar