Liberdade duas vezes

Ainda devia estar em cena por estes dias de Outubro, se recuarmos exactamente quatro décadas, ali no Teatro Villaret, na Fontes Pereira de Melo, em Lisboa. Liberdade duas vezes. Ou Liberdade, Liberdade, assim era o título da peça. É curioso recordá-la num momento que se anuncia a reposição do espectáculo Liberdade, que Sérgio Godinho criou para os 40 anos do 25 de Abril, a convite do São Luiz (onde se estreou, no mês homenageado), e que agora rumará ao Rivoli, no Porto (a 1 de Novembro) e ao Coliseu de Lisboa (a 22 de Novembro). E se há ligação entre ambas para lá do título, singular ou dobrado, é precisamente Sérgio Godinho.

Mas antes, recuemos ao título. Liberdade, Liberdade foi uma criação de Flávio Rangel e Millôr Fernandes, num Brasil já castigado pelos militares, e estreou-se a 21 de Abril de 1965 no Teatro Opinião do Rio de Janeiro. O golpe militar já tinha um ano (foi a 1 de Abril de 1964), mas a censura levaria ainda algum tempo até se abater por completo sobre as artes. Num ensaio de Mariana Rodrigues Rosell (Campinas, 2012), atribui-se essa “abertura” a duas coisas: uma, o facto de o regime querer mostrar uma face “livre” que não tinha; outra, que ela cita de um relatório da censura da época, é o limitado alcance da “mensagem” que tal teatro difundia: “Uma plateia adulta e bem formada como a paulista, a qual é selecionada pelo próprio ingresso à sala de espectáculo (custo e ambiente), fazendo com que não atinja a massa menos instruída.” A Liberdade a dobrar tinha um preço e os pobres não podiam pagá-lo. O “perigo” era reduzido.

Mesmo censurada no Brasil, a peça manteve a sua característica de encaixar na “vertente engajada do teatro brasileiro, a dos musicais”. Millôr explicava, à data, que aceitara o convite de Flávio por duas razões: “1) Porque sou um escritor profissional; 2) Porque acho esse negócio de liberdade muito bacana.” E porque a mentalidade do Brasil, à época, era “nitidamente borocoxó”. Millôr puro. Já Flávio dizia que a peça pretendia “reclamar, denunciar, protestar — mas sobretudo alertar”. Estreou-se, portanto, no Brasil no dia da comemoração de Tiradentes, com Paulo Autran, Nara Leão e Oduvaldo Viana Filho, com participação especial da actriz Tereza Rachel.

Isso foi em 1965, no Brasil, com a ditadura recém-chegada. Em Portugal estreou-se, pelo contrário, com a liberdade recém-chegada. A 28 de Agosto de 1974, apenas quatro meses depois do 25 de Abril, tomava o palco do Teatro Villaret a versão portuguesa da peça, sobrando do original brasileiro apenas um terço. Dirigida e encenada por Luís de Lima, actor e encenador português que há anos trabalhava no Brasil, contava com ele próprio como actor, além de Maria do Céu Guerra e João Perry, dois pesos-pesados (no bom sentido) do teatro português. Faziam vários papéis, como no original brasileiro, desmultiplicando-se em personagens que tanto estavam em França como nos Estados Unidos ou no Chile, citando Brecht ou O’Neill, Alberti ou Drummond, Paul Éluard ou Vinicius, por entre excertos teatrais de Shakespeare, Beaumarchais, Büchner ou Brecht ou canções de José Afonso, Lopes-Graça, Paul Robeson, Gershwin, Victor Jara e hinos e marchas de vários países. Havia um cantor em cena (Carlos Cavalheiro), quatro músicos (Júlio Pereira, Carlos Patrício, Maria João Relógio, Pintinhas), a direcção musical era de José Mário Branco e Fausto e o “dispositivo cénico” de Mário Alberto. Esteve em cena semanas e meses, numa altura em que o país realmente fervia.

Talvez devido a essa fervura, Luís de Lima abandonou a peça, por incompatibilidades (nascido em Lisboa, em 1925, e a trabalhar no Brasil desde 1953, viria a morrer em 2002 durante as filmagens da telenovela brasileira Esperança). Ficando o lugar vago, José Mário Branco lembrou-se de convidar Sérgio Godinho, que do exílio francês, onde se haviam conhecido, se mudara para o Canadá. Sérgio, que já dera um salto a Lisboa em Maio, em plena euforia de liberdade reencontrada, aceitou e instalou-se em Lisboa em Setembro de 1974. E ocupou o lugar deixado vago por Luís de Lima, que logo nos primeiros minutos da peça dizia isto: “Hoje é tempo de acção para todos nós. Até para os milhares de portugueses com sotaque estrangeiro, como eu. Melhor ainda, no meu caso. Agora já sei falar duas línguas, Português e Brasileiro. Voltámos à Pátria e fazemos parte do caudal irresistível que opõe ao ódio e à opressão um Mundo Novo de amor, paz e progresso.” O resto foi o que se viu. Mas quarenta anos não são quarenta dias, que diabo!     

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