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Livraria solidária na Pousada de Cascais apoia Associação Portuguesa de Portadores de Trissomia 21. Déjà Lu vende livros doados

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Luís Araújo, do Grupo Pestana, e Francisca Prieto, da Déjà Lu, querem criar um clube de tertúlia literária João Silva
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João Silva

A Cidadela de Cascais tem desde sábado uma livraria de livros lidos. Por cima do restaurante Taberna da Praça, é agora possível comprar obras em segunda mão. Melhor, em “segunda leitura”. O dinheiro obtido com as vendas será encaminhado para o apoio à integração de jovens com trissomia 21 no mercado de trabalho.

Déjà Lu começou por ser, em 2011, um blogue de leilões de livros doados, da responsabilidade de Francisca Prieto e Maria Faria de Carvalho. Através dele, venderam 1600 livros e angariaram 15 mil euros (12 mil online e 3 mil em banca, por participações em feiras).

Agora, têm um espaço físico onde se pode escolher directamente os livros, como numa livraria comum. Ou nem tanto, já que as obras se agrupam segundo critérios originais: “Acabados de sair da gráfica”; “Mulheres com vidas extraordinárias”; “Dos que já não se encontram”; “Histórias de quatro patas” ou “Nobéis (que isto não é uma chafarica)”. O tom informal e bem-disposto a guiar o leitor nas suas escolhas. “Quisemos reproduzir o espírito dos posts do blogue”, explicou ao PÚBLICO Francisca Prieto dois dias antes da inauguração.

Havia livros no chão, em caixas sobre uma mesa grande, dentro de troncos de árvores e de televisores esvaziados, mas a decoração ainda não estava completa. Numa sala lateral, onde se arruma a literatura para crianças e jovens, mas também títulos estrangeiros, havia quem almoçasse. Prateleiras cheias de livros em convivência pacífica com uma funcional área de buffet. Pequena amostra do que a Déjà Lu também pretende ser.

“Vamos fazer a tentativa de que haja uma amena cavaqueira entre comida e livros”, diz a agora livreira. “Já combinámos com o restaurante fazer quinzenas com menus literários”, exemplifica.

Para Luís Araújo, administrador do Grupo Pestana, o conceito chegou na hora certa: “Logo no início, este restaurante foi concebido como uma taberna literária, porque era aqui que se reuniam os Vencidos da Vida [intelectuais de relevo da cultura portuguesa dos finais do século XIX que se juntavam em tertúlias e a que Eça de Queirós chamou ‘grupo jantante’]”, conta ao PÚBLICO. E prossegue: “Quando a Francisca [Prieto] apareceu, foi como se as rodas dentadas se encaixassem. Achámos que o projecto se enquadrava lindamente no espírito aberto do Cidadela Art District e no nosso plano de sustentabilidade, Planet Guest.”

O Art District foi criado há um ano e dele resultaram seis galerias de arte: “Tivemos seis artistas residentes e fizemos vários eventos, sempre na perspectiva das artes plásticas”, recorda o responsável pelo projecto da Cidadela de Cascais. Quando pensavam em extravasar o âmbito cultural das iniciativas, surgiu a ideia da Déjà Lu, com a vantagem de ser solidária, o que ia ao encontro da iniciativa do grupo em ajudar instituições de solidariedade social. Uma das vertentes do Planet Guest consiste em pedir aos clientes que contribuam com um euro no check out das suas unidades hoteleiras. A cada euro recebido, o Grupo Pestana adiciona outro e entrega a totalidade a instituições.

No caso da livraria, a facturação irá corresponder à nova prioridade da Associação Portuguesa de Portadores de Trissomia 21 (APPT21): “A profissionalização dos jovens”, diz Francisca Prieto, de quem nasceu há nove anos uma filha com trissomia 21. A associação faz este ano 25 anos e foi o tempo que durou a conseguirem ter 100% das crianças integradas no sistema regular de ensino. “Isto é uma vitória extraordinária. Ter estes miúdos a ler, a escrever, a contar.” Agora, há que corresponder às expectativas de pais e filhos no final da escolaridade obrigatória.

“E eles são capazes de trabalhar”, diz. E acredita que “a oportunidade cria a capacidade”. Sabe, no entanto, que não se pode pôr estes jovens a trabalhar todos os dias, de repente, sem acompanhamento. Por isso defende que “tem de haver verba para podermos contar com gente que possa ser formada na sua integração e acompanhamento”.

Exemplifica: “Vamos supor que há um jovem com trissomia 21 aqui a trabalhar [no hotel] e de repente começa a empurrar as coisas todas porque bebeu dez cafés e está eléctrico. A Joana Soeiro [directora da pousada] fica com um problema, que é: eu tenho de falar com o pai deste rapaz, mas é uma chatice, pois tem mais que fazer do que andar a falar com os pais dos funcionários. É completamente diferente ir tratar do assunto com uma entidade mediadora”, habilitada a resolver problemas dessa natureza.

Interrupção sorridente de Luís Araújo: “Por isso é que é tão importante virem à Déjà Lu comprar muitos livros.”

Nos planos desta parceria também estão ainda a criação de “um clube de tertúlia literária e uma programação que inclua aulas de escrita criativa, conversas abertas sobre teatro ou qualquer outra coisa que tenha que ver com palavras, artes e letras”, diz a ex-publicitária. Já Luís Araújo remete para a vontade de ter palestras que divulguem a cultura de países onde o grupo tem oferta hoteleira: “Muito provavelmente, vamos fazer sessões com escritores colombianos, brasileiros, argentinos ou ingleses.” E está convencido de que “os livros são mais agregadores e menos polémicos do que a arte”.

Num ano, 500 livros vendidos

Francisca Prieto tem mais três filhos, de 13, 11 e oito anos, mas admite que só se sensibilizou para as questões de trissomia 21 depois de esta ter entrado na sua vida: “Normalmente, quando temos alguém muito próximo é que sentimos o apelo, a necessidade e a obrigação de colaborar.” Foi o que lhe aconteceu: “Comecei a colaborar com projectos de angariação de fundos para a APPT21 porque achava que aquela excelente equipa técnica não podia andar a desperdiçar tempo a angariar fundos em vez de fazer o que melhor sabe: terapia com estes miúdos.”

Depois de iniciativas como venda de postais de Natal às empresas e outras, aproveitou a era das vendas em segunda mão via Internet e lançou o blogue de leilões de livros lidos que agora dá nome à livraria.

Logo no primeiro ano, venderam 500 livros, sendo 80% dos clientes de fora de Lisboa. “Muitos de província e de província profunda. O que quer dizer que não têm acesso com facilidade a livros bons, provavelmente só aos do supermercado mais perto da terra. Mas, como têm uma cultura acima do tipo de livros que se vende normalmente no supermercado, compram pela Internet.”

Para a definição dos preços, há uma mistura de “feeling com com o estado do livro”, vai explicando Francisca Prieto. “Tenho livros que acabaram de sair da gráfica, são novidades e estão em qualquer livraria. Só que alguém já os leu.” Por conseguinte, argumenta, “o preço não tem de ser igual, é um livro em segunda mão, posso vendê-lo mais barato, foi um donativo”. Além disso, acrescenta “são exemplares únicos não estou a vender uma tiragem”.


Nuno Markl a 23,50€

O livro mais barato que se recorda de ter vendido online “foi a 2,50€, com embalamento e portes incluídos”, integrado em saldos para escoamento de stock. “Lembro-me de ter vendido uma vez, por exemplo, o Amor de Perdição numa edição de bolso”, mas não conseguiu reproduzir os dados da edição. “O valor mais alto obtido com um livro foi de 23,50€, por um exemplar da Caderneta de Cromos, de Nuno Markl, com dedicatória do autor e desenho da Patrícia Furtado. Foi em Novembro de 2011 e foi o livro mais disputado de sempre, provavelmente por alguém que o queria oferecer no Natal.”

Todo o trabalho da livraria, como catalogação, registo dos títulos na base de dados, arrumação e atendimento será assegurado por voluntários, “excepto a parte administrativa, que tem de ser remunerada”, explica Francisca Prieto, que também não terá ordenado e que muito agradece a todos os amigos que se associaram ao projecto da Déjà Lu. Há postos de recepção de livros em Lisboa, Cascais, Setúbal, Porto e Vila Real.

O primeiro livro vendido no blogue foi Comer, Orar, Amar (Elizabeth Gilbert, Bertrand), por 12€. O primeiro vendido na livraria da Cidadela foi o infantil João Porcalhão (de Alan MacDonald e David Roberts, Editorial Presença), por 5€. Ainda a inauguração não tinha acontecido.

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