Lembra-te da morte

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Rui Pires Cabral

Há uma personagem de Vergílio Ferreira que a dado passo recorre à língua inglesa para que o que se prepara para dizer — simples nota sentimental — crie uma distância capaz de a isentar da banalidade do que se gasta pela usura. Por caminhos diferentes, algo semelhante se passa neste livro singular de Maria da Conceição Caleiro. O título inglês cria esse afastamento e gera uma breve quebra na comunicação imediata de um ponto de partida “ambiental” para o conteúdo do breve livro que nos preparamos para ler. No entanto, essa distância rapidamente se revela dupla. E mais complexa do que, à vista desarmada, poderia parecer. A expressão too much remete para o filme coreanoMemento Mori, a que a epígrafe inicial alude — uma inscrição silenciosa, por assim dizer, pois a película não chega a ser nomeada. Nova segunda língua, portanto: desta vez, a do cinema. Da leitura desta narrativa — termo que deve ser considerado provisório, neste ponto — se perceberá que esse dado intervém de forma determinante. É a morte de alguém próximo da narradora que vai activar o que se seguirá. O texto como que absorve a malha de sentidos urdida pelo título e pela epígrafe, e é assim que deparamos com a narradora a visionar o filme citado; e é dessa forma que também nós, leitores, assistimos à precipitação dos acontecimentos, ou assomos de um acontecer quase em suspenso. Uma suspensão que parte da morte e chega à morte. Pois é dela que se trata. O que nos chega parece o eco de águas distantes. Como a ilusão de mar numa concha pueril. Mas pueril é coisa que este livro não é.

A construção da atmosfera é replicada periodicamente e intensificada pela introdução de uma segunda presença estrangeira, o latim: memento mori. A tradição, possivelmente espúria, segundo a qual os poderosos teriam um servo que lhes lembraria a sua própria mortalidade é, apesar de tudo, um bom indicativo. E uma referência útil para os propósitos aqui em causa. Também a narradora é relembrada da sua própria mortalidade, mas, sobretudo, do carácter mortal de tudo quanto há. Desse modo, cada vez fica mais distante a aura de erudição que aqui, felizmente, não há. Antes a literal, implacável e rude verdade de que as palavras são ainda capazes: “Lembra-te da morte”, “Lembra-te de que vais morrer”, parecem dizer. O filme que a narradora vê e o acontecimento que passa a marcar o livro e as suas circunstâncias — a morte de uma amiga — tornam-se sinais de uma inquietação que tomará conta da sua identidade. E que forçará uma viagem de catarse que a leva à geografia atlântica já surgida em O Cão das Ilhas (Sextante, 2009) — romance de estreia da autora, onde também se fala da «[p]rofanação do meu exílio». E ainda que a direcção seja diferente (dos Açores para o continente, no caso do romance), a ponte aérea é a mesma. A viragem então instaurada, que cria um rumo açoriano, figura uma outra morte. Aquela em que a vida tenta prosseguir depois da extinção — “também fui, bem precisava, aquela história era de horror” (p. 17). A capacidade tenaz que a vida tem de prosseguir nas orlas escarpadas do sentido. Uma ilha é uma imagem eivada de força, neste lugar da escrita. Para mais, situada num arquipélago que tem constituído uma geologia poderosíssima para a escrita portuguesa. “Nenhum rosto humano no horizonte, na calmaria mórbida” (p. 18) é, entretanto, uma outra forma de dizer o paradoxo dos que sobrevivem. A quê? E como? — “Via-me do lado de lá, já morta, ou a morrer” (p. 19). A presença das religiosas representa uma como morte em vida — projectada como negação do corpo, ou do aspecto temporal dele, pelo menos. No fragmento de uma frase, Maria da Conceição Caleiro resume a tensão que as suas palavras criam entre os dois pólos — “da vida fazia parte a morte” (p. 22). A expressão “too much” refere-se à demasia da vida, ao seu excesso impossível de calcular. A desmesura de ter, aparentemente, a eternidade, mesmo quando o caminho acaba já ali — “Conto ter, espero, um dia e meio de vida, Just that, and it is too much” (p. 25). Dádiva excessiva, imponderável, a vida. A morte.

A mecânica de Too Much condiciona que, em certos trechos, a prosa dê lugar ao verso — algo que também sucedia no romance de Maria da Conceição Caleiro. Este processo, esta comutação entre tipos de texto, vai criando oscilações, como se quisesse aniquilar, ou pelo menos esbater, as fronteiras entre eles. Como se a adopção de uma ou de outra possibilidade fosse a manifestação discreta de qualquer coisa que decorre, ao mesmo tempo, mais a fundo e fortemente na superfície de tudo. Este texto, felizmente, sabe fugir às categorizações, mas seria possível arriscar conhecê-lo como narrativa poética — correndo todos os riscos, inclusivamente o tipológico, como é óbvio. Por vezes, cabe-lhe explicar, construir paredes onde apenas existem as marés incontidas de uma morte por suicídio, momento em que a prosa toma a direcção da escrita. Quando tudo começa, há um diálogo que se esboça na elipse de um como verso. E em que esta “forma” parece adaptar-se à dramaticidade de duas presenças. Presenças, essas, que apenas se insinuam, sem se espraiarem. Por contraste, quando a prosa regressa, descreve-se um ambiente, aponta-se um décor, há um estado físico/anímico que se apresenta. A sístole dá origem à diástole. Mas quando a matéria que se acumulava, em projecção e antecipação, se torna tal que não há como contê-la, é o verso que dá expressão a essa desmesura — o que nos poderia lembrar as palavras de Mallarmé quando este dizia que “o verso é tudo a partir do momento em que escrevemos”. Nesses segmentos entrecortados, que são deixados a respirar, mas apenas de forma compassada e febril, dominam os regimes tonais e anímicos potenciados pela epígrafe. Esta criara um sortilégio da palavra que se debruça sobre a morte. Esses ecos, que se desdobram em ciclos de sentido, presentes naquelas palavras iniciais, conhecem as suas réplicas ao longo de Too Much.

O que, em O Cão das Ilhas, era uma pungente identificação entre a narradora e os maus tratos infligidos a um cão — “deram-lhe um pontapé como se se tratasse de ti” — torna-se, em Too Much, uma apropriação fantasmagórica do destino fatal de uma amiga — “assim eu continuava a ver, a ver melhor a verdade, a sua morte. A minha. A tua” (p. 23). Lembra-te da morte.

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