Kilimanjaro, de Hemingway, é uma montanha mas também um icebergue

Kilimanjaro é não tanto a montanha que se ergue no meio da savana da Tanzânia, perto da fronteira com o Quénia, mas antes um lugar da ficção de Ernest Hemingway, perto da fronteira com a sua biografia.

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RUI CARLOS MATEUS

Bebe-se muito em Kilimanjaro. Bebe-se brandy, whisky, cervezas, licores, aguardente, vinho. Bebe-se sempre: na solidão, na tentativa atormentada de existir no passado, na distorção da realidade de uma casa que estará sempre vazia no fim da noite, na discussão de temas conjugais, no antídoto para o frio cortante, nos rompimentos amorosos, nas celebrações fraternas. Qualquer ocasião é boa.

No palco do Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada, de 5 a 14 de Dezembro, Kilimanjaro é não tanto a montanha que se ergue no meio da savana da Tanzânia, perto da fronteira com o Quénia, mas antes um lugar da ficção de Ernest Hemingway, perto da fronteira com a sua biografia. Harry Street, alter-ego do escritor, agoniza no conto As Neves do Kilimanjaro, entregue a uma galopante derrota para a gangrena, depois de ferido num safari. E a partir desse estado moribundo vai desfiando junto da mulher memórias passadas, enquanto pede um constante reforço da bebida. Rodrigo Francisco, encenador da Companhia de Teatro de Almada, apodera-se desse mote, mas enxerta na rememoração outros contos do autor norte-americano.

As Neves do Kilimanjaro, assim como A Curta e Feliz Existência de Francis Macomber, são histórias que Hemingway, segundo confidenciou o autor em entrevista à Paris Review, inventou “a partir do conhecimento e da experiência adquiridos durante uma mesma longa viagem de caça, que se prolongou um mês”. “Isto da caça e da pesca é algo que parte da infância e das raízes dele, que lhe está no sangue, e das quais nunca mais se separou”, comenta Rodrigo Francisco. “Depois, a dada altura, ele resolve transformar essas vivências em literatura e acho que essa é a sua grande originalidade. Foi essa a porta que me levou a entrar pela literatura e a interessar pelo Hemingway – um tipo que escreve sobre basebol ou caça como quem escreve sobre poesia, para quem não há um mundo dos cultos e literatos, e outro mundo do povão, de onde não se pode sair. A arte, para ele, não é apanágio de iluminados teóricos que acham que têm a verdade sobre as coisas. A arte é a vida. E nestas cenas, em cada uma delas, há vida por todo o lado.”

Por estas cenas passa também uma outra convicção de Rodrigo Francisco – a de que através dos contos lavrados por Hemingway, rentes à vida, pode afinal contar-se em paralelo a história da primeira metade do século XX. Sobretudo porque de forma explícita ou implícita se percebe um universo forjado pela participação nas duas Guerras Mundiais e na Guerra Civil Espanhola. Para que a distância entre Hemingway e Kilimanjaro fosse reduzida ao mínimo possível, o encenador leu aturadamente biografias e a correspondência do escritor que tem vindo a ser publicada. De onde extraiu, numa carta dirigida à irmã, a justificação de que teria viajado para a Europa como fuga do aborrecimento que seria viver nos Estados Unidos. “Vem para a I Guerra, voluntaria-se para a Cruz Vermelha, como condutor de ambulâncias, quase como um jovem que hoje vai fazer um inter-rail”, compara Rodrigo Francisco. Mas aquilo de que vai à procura é de uma Paris efervescente, chamariz para artistas de todo o mundo, onde se cruza com F. Scott Fitzgerald e Ezra Pound, e frequenta as soirées de Gertrude Stein.

É o enamoramento por Espanha, no entanto, que forja o primeiro grande romance da sua carreira literária, O Sol Nasce Sempre (também publicado como Fiesta). Para Rodrigo Francisco, esse é o livro em que o autor deixa que as frases contem “como se apaixonou por um país onde havia ainda uma certa pureza das pessoas, onde ainda não havia aquela civilidade puritana que tinha sido imposta na América.”

A verdade
Correspondente de guerra e correspondente internacional para o Toronto Star Weekly, Hemingway assinaria um texto em forma de diálogo para a revista Esquire, publicado em 1935, em que defende que “escrever bem é escrever com verdade”. Não o fazer, escrever sem conhecimento sobre o assunto, diz ainda, pode iludir os leitores durante algum tempo, mas não serve a quem não opte pela ficção fantástica. E uma vez dominada a arte da mentira, adverte, a verdade será difícil de reaver. Este pacto de sangue com a verdade parece nortear também o Harry de Kilimanjaro e o Hemingway que parte para a Europa. Como se para poder escrever perto da verdade tivesse de fugir ao tédio em que se via afundado nos Estados Unidos, como se para poder ser fiel a esse casamento com a autenticidade se visse forçado a viver na vizinhança dos livros que queria escrever, da realidade que lhe interessava poder verter para os romances. Como se as experiências em si, dos safaris, das touradas e outras emoções que buscava incessantemente, fossem movidas mais pelo desejo de observação e pela validação segundo as suas próprias regras do material literário recolhido.

Rodrigo Francisco admite que essa ideia esteve também em cima da mesa durante os ensaios de Kilimanjaro, debatendo com os actores aquilo que García Márquez resumiu no título da autobiografia Vivir para Contarla. E, de certa forma, está também plasmada na organização da peça em três grandes blocos: a juventude, a experiência da guerra e as consequências dessa experiência na persona literária. De Harry e de Hemingway. Uma dessas consequências, que o álcool apenas sublinha, é a da dificuldade de Harry em lidar com os afectos, erguendo uma frieza tangente à crueldade para com as mulheres, e uma sublimação repetida da camaradagem masculina. “É justamente um escritor da amizade no masculino”, confirma o encenador. “E a cena na Suíça em que assistimos à despedida de dois amigos, porque um vai casar-se, ser pai e voltar para os Estados Unidos, é para mim altamente comovente. O que me agrada é não ser uma cena de lágrimas. Há um grande pudor em expressar os sentimentos. É aquela parte do icebergue que está submersa e é arrebatadora.”

E então, em vez de choros, Harry e George (como antes Harry e Bill) planeiam embebedar-se e imaginam a perfeição que seria percorrerem a Suíça a esquiar e a pararem em cada estalagem para abençoarem a sua amizade com o álcool. Bebem mais um copo e impelidos por essa desculpa vão ao chão, rebolam um sobre o outro, permitem-se um contacto físico que o tal pudor da sobriedade não autoriza. E são tragados para o lado submerso do icebergue, um sítio para onde as palavras apontam mas ao qual já não chegam.

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