Kalbelia, a dança que enganou a UNESCO

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Etnomusicólogos e antropólogos criaram uma falsa caução histórica para a dança kalbelia, alegando que ela surgiu como uma evolução do encantamento das serpentes NELSON GARRIDO

Sempre que Ayla Joncheere fala da sua investigação sobre a dança kalbelia, no Noroeste da Índia, há sobrolhos franzidos. “A reacção é sempre a mesma. ‘Oh, isso é muito mau.’”

Não será sinal de desaprovação mas o facto de o seu case-study representar o tipo de armadilhas que os folcloristas temem: uma dança inventada nos anos 1980 e estimulada pela política cultural de um regime foi incluída na lista do património imaterial da humanidade da UNESCO – a mesma onde figuram o fado e a dieta mediterrânica, duas propostas portuguesas – sob falsos pretextos.

No congresso O Povo Somos Nós: Repensar o Folclore no Século XXI, alguns conferencistas sugeriram que o conceito de património cultural imaterial estabelecido pela UNESCO é problemático, mas nenhum exemplo foi tão flagrante como o que Ayla Joncheere, doutoranda em Línguas e Culturas Indianas da Universidade de Ghent, na Bélgica, trouxe.

A dança kalbelia surge num contexto de revalorização e autonomização da cultura indiana em relação ao domínio colonial britânico, que chegou a proibir a dança. No período da pós-independência, a Índia fez da dança uma das suas principais bandeiras identitárias. Em 1981, ao mesmo tempo que no interior da Índia o Governo estava a ser pressionado para alargar o conceito de cultura indiana a expressões tradicionais e regionais (numa altura em que a política cultural dava prioridade às artes ditas clássicas), uma responsável do departamento de turismo do estado do Rajastão viu uma jovem dançar numa feira de gado local e ficou tão impressionada que convenceu o ministro da Cultura a convidá-la para o Festival da Índia, uma demonstração da cultura nacional organizada pelo Governo e destinada a uma circulação internacional.

Apesar da popularidade que a dança kalbelia atingiu no Ocidente (coincidente com o aparecimento do conceito de world music), na Índia ela teve dificuldades de aceitação. Não era uma dança com pergaminhos, que tinha sido transmitida de geração em geração, nem era baseada nos rituais diários da comunidade a que dizia pertencer, os kalbelia, um povo nómada do Rajastão.

Contudo, a kalbelia é hoje considerada uma dança tradicional na Índia. O que aconteceu é um exemplo de como o crescimento do turismo e a mercantilização do património local levaram a melhor sobre o rigor académico, nota Ayla Joncheere. Apoiados pelo Governo, etnomusicólogos e antropólogos criaram uma falsa caução histórica para a dança kalbelia, alegando que ela surgiu como uma evolução do encantamento das serpentes: depois de o Governo indiano proibir a apanha de serpentes na década de 1970, as mulheres terão tomado o lugar destas nessas actuações.

Mas no seu trabalho de campo, Ayla Joncheere não detectou qualquer ligação entre as duas coisas. A maior parte das dançarinas de kalbelia não consegue apontar qualquer tradição de apanha de serpentes na sua família; e quando Ayla as questionou sobre a relação da sua dança com serpentes, foram peremptórias sobre a inexistência da mesma.

No entanto, desde 2010 a kalbelia figura na lista oficial da UNESCO de património cultural imaterial da humanidade como uma dança tradicional com raízes no encantamento de serpentes. “Isso contradiz completamente a Convenção da UNESCO para a salvaguarda do património cultural imaterial”, nota Ayla Joncheere, acrescentando que tem sido difícil obter informação daquela organização justificando a decisão. “Contactei todos os gabinetes da UNESCO na Bélgica, em França e na Índia e ninguém me conseguiu dar informação sobre como decorreu o processo de reconhecimento”, explica ao PÚBLICO.

“Não me parece que eles tenham verificado se o dossier de candidatura apresentado pelo país é mesmo baseado numa pesquisa séria. Suponho que também seja difícil confirmar: os kalbelia não falam inglês, o que cria um problema de comunicação. E se a UNESCO recorrer aos especialistas que apresentaram a candidatura, eles não vão admitir que fizeram alguma coisa errada.”

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