Julguem sempre um livro pela capa

No Homem do Saco os livros são feitos à mão, um de cada vez. “Isto é tão subversivo quanto um cesteiro ou um sapateiro”, dizem.

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RICARDO CASTRO
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KATHLEEN GOMES
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Em Agosto, os donos de uma oficina tipográfica em Lisboa mudaram de instalações e precisaram de ajuda extra para transportar uma máquina de ferro fundido com uma roda do lado esquerdo.

A empresa de mudanças contratada mandou três homens com um camião e três pares de braços amigos, dois deles poetas, foram convocados. Dez homens contra uma máquina; mas as fotografias tiradas no momento sugerem a pega de um touro, ou o que Luís Henriques, um dos forcados amadores envolvidos no empreendimento, descreve como “uma valente tourada”. Foi a primeira coisa a ser instalada no novo espaço, um rés-do-chão na Avenida Dom Carlos I, a 500 metros do Parlamento. E, se nessa circunstância – uma sala branca e desprovida de contexto – se tivesse perguntado a uma amostra de peões que máquina era aquela e para que servia, talvez poucos tivessem acertado. Imaginem uma máquina de costura com um tampo de escrivaninha e uma bandeja móvel como têm as tostadeiras. E o tal leme do lado esquerdo. Uma peça de museu, disseram? Afirmativo.

Ninguém disputará que Gutenberg e os seus herdeiros – tipógrafos com as mãos sujas de tinta e o odor penetrante do petróleo – são uma coisa do passado. Os últimos espécimes estão a fazer cartões em papel timbrado e folha de ouro para o Governo de Angola. Mas uma nova geração de não-tipógrafos tem vindo a abraçar os velhos métodos de impressão de texto, tinta e petróleo incluídos, para produzir livros.

Numa altura em que o meio editorial se define pela sua concentração em grandes grupos e pelo triunfo definitivo do livro enquanto produto comercial, projectos como o Homem do Saco parecem grandiosamente reacionários. Eles não se limitam a olhar para trás. Eles olham muito para trás – mais exactamente para o século XV, quando Gutenberg imprimiu a Bíblia na sua oficina tipográfica, entregando-a depois a artesãos para que adornassem as páginas; cada exemplar era único.

O mesmo pode dizer-se do Homem do Saco, que se distingue por não fazer um livro igual a outro. A sua especialidade é slow printing, porque um livro dá trabalho. Ainda agora, quatro dos membros do Homem do Saco dedicaram quatro meses a fazer cem exemplares do mais recente livro de poemas de Alberto Pimenta. Compor, imprimir, cortar papel, montar em cadernos, coser, encadernar. “Parecia uma linha de montagem do século XIX”, diz Mariana Pinto dos Santos, rindo. Uma parte da impressão de Autocataclismos foi feita na peça de museu acima referida, uma máquina tipográfica Minerva.

O Homem do Saco abriu em Dezembro de 2012, num pequeno espaço comercial próximo do Campo Mártires da Pátria, criado por um grupo de amigos, alguns artistas, alguns poetas, um farmacêutico e uma pianista. Eram oito, mas são precisas nove pessoas para formar uma associação, pelo que a mulher de um deles, psicóloga, passou também a integrá-la, nominalmente. O Homem do Saco é aquilo que une toda a gente, mas existe espaço para projectos individuais e quase todos os membros têm a sua própria editora ou chancela – Pianola, Momo, Edições do Tédio, 100 Cabeças, Troppo Inchiostro...

“Costumamos brincar que somos um grande grupo editorial”, diz Mariana Pinto dos Santos, historiadora de arte, sob o riso geral.

“Este lado mais ou menos anárquico de cada um poder ter uma chancela acaba por ser bastante saudável”, diz Eduardo Brito, fotógrafo e arquivista que vive em Guimarães.

“Aliás, há mais chancelas que membros”, nota Ricardo Castro, artista plástico.

“Cada um tem as suas ideias e ninguém empata ninguém. Por isso é que acho que isto funciona tão bem”, diz Mariana. “Já todos tínhamos tido algumas experiências associativas e sabíamos quais eram os problemas que podiam surgir. Portanto, chegámos cá sabendo como evitá-los.”

“Ou que, pelo menos, as coisas não se sobreponham”, diz Luís Henriques, ilustrador com formação em pintura. “Não haver ninguém que puxe demasiado pelas burocracias. Não haver ninguém que está sempre a tentar controlar o que os outros andam a fazer. Às vezes, mesmo quando são associações pequenas, as pessoas formalizam demasiado as coisas.”

O Homem do Saco não tem um plano editorial. “O nosso programa é não ter programa”, dizem. Vítor Silva Tavares, o editor da &etc, é, além de amigo, uma referência. “A forma como ele está na edição é exemplar, não há ninguém assim. É muito liberto. Não faz reedições. E independentemente dos valores que os seus livros possam atingir no mercado, ele não altera os preços”, diz Mariana Pinto dos Santos. “Mesmo a nível editorial, ele segue um critério muito pessoal, mas que é bastante diversificado. Tanto pode publicar grandes escritores como os mais obscuros”, acrescenta Luís Henriques. Mariana: “Ainda hoje continua a publicar autores novos.”

Recentemente, O Homem do Saco produziu as capas de dois livros da &etc, Como Se Morre, de Émile Zola, e Cotão, de Miguel Martins. A capa do primeiro volume da Obra Escrita de João César Monteiro, uma edição da Letra Livre que inclui os guiões dos primeiros filmes do cineasta, também foi impressa no Homem do Saco. Não uma capa, mas mil. Os livros quadrados de capa preta chegaram ao Homem do Saco já montados, e Luís Henriques, responsável pela concepção gráfica de Obra Escrita, fez as capas no prelo, uma a uma. Durante dias, O Homem do Saco esteve intransitável porque o chão estava coberto com os livros, de modo a que a tinta das capas secasse – essa é uma das razões porque a inauguração do novo espaço na Dom Carlos I foi sendo adiada para Outubro, embora já esteja a funcionar a 100%.

Ninguém aqui se importará que julguem os seus livros pela capa. “A ideia é que o livro seja um objecto em que a forma corresponda ao conteúdo”, resume Mariana Pinto dos Santos. O livro de Alberto Pimenta, por exemplo: cada poema parece dois haikus, dispostos lado a lado, razão porque o livro tem uma encadernação japonesa e o papel é semelhante papel de arroz. Para além desta edição especial de cem exemplares, enumerados e assinados, existe uma segunda edição, de 400 exemplares, a preço mais acessível, impressa em offset numa gráfica. Os poemas estão impressos em letra vermelha sobre papel verde – como as cores da bandeira, mas “esbatidas, esmaecidas”, nota Mariana, por “serem bastante corrosivos em relação a Portugal”. E como o livro esteve para se chamar O Regular Funcionamento das Instituições, pensou-se que o formato poderia simular um livro de recibos, “uma coisa um bocado burocrática”, diz Luís Henriques. O título original ficou pelo caminho, mas o formato sobreviveu, como uma memória disso.

Os livros do Homem do Saco não são para toda a gente. Nem sequer para muita gente. A tiragem média ronda os 50 exemplares e alguns deles, como Stardust, de Rui Pires Cabral, esgotam assim que ficam prontos. Os livros são vendidos por correio (mediante transferência bancária) e nos seguintes pontos de venda: Letra Livre, Paralelo W e Pó dos Livros, em Lisboa; Poetria e Gato Vadio, no Porto; Livraria Utopia, em Coimbra; Livraria Pinto dos Santos, em Guimarães, e Fonte de Letras, em Évora.

Apesar de muitas vezes usarem materiais nobres, e apesar do trabalho paciente e manual que investem em muitas edições, não estão interessados em produções imaculadas. As técnicas que usam são as de um tipógrafo, mas insistem na ideia de que trabalham de forma diferente. “Nós queremos explorar os materiais, mesmo com o grão e as falhas que têm.” Um tipógrafo profissional jamais aprovaria.

Também não têm uma postura de pureza em relação ao que fazem ou como fazem. Não fazem livros exclusivamente artesanais – as páginas de texto de Intimigrafia, de André Barata, foram fotocopiadas (a cores, porque o preto fica melhor dessa forma) no papel que sobrou do livro de Alberto Pimenta.

Nem sequer fazem exclusivamente livros – dá-se o caso de imprimirem a ementa para um restaurante; também fizeram cartazes para o último Festival de Músicas do Mundo de Sines.

Não têm a pretensão de preencher nenhuma lacuna no mercado editorial. “Não queremos saber. Quero publicar aquilo que me apetece”, diz Mariana Pinto dos Santos. “Os princípios disto são os princípios do trabalho artesanal”, diz Rui Miguel Ribeiro, poeta. “Isto é tão subversivo quanto um cesteiro ou um sapateiro.”

 

 

 

 

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