Joyce Carol Oates não sou eu, é a escritora

Quase nada do que eu digo é de fiar porque vivo no mundo da fantasia – a frase não é dita exactamente assim, mas sintetiza uma entrevista exclusiva com Joyce Carol Oates em vésperas de aparecem em Portugal mais dois livros desta escritora norte-americana recorrentemente apontada para o Nobel da Literatura.

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Talvez o que mais surpreenda naquele rosto seja a ironia. Quando fala de si, quando gesticula, quando é assertiva, quando quer ser rápida na mensagem – como no raspanete que dá a Philip Roth para que se deixe de vaidades, remetendo para uma frase sua, a de que a escrita existe mas os escritores não.

“Joyce Carol Oates não existe a não ser enquanto personificação de um autor”, afirmava em A Widow’s Story: A Memoir (2011), o mais privado dos seus livros, escrito na ressaca da morte do marido, vítima de uma infecção viral quando estava internado com pneumonia no Centro Médico de Princeton. Raymond Smith e Joyce Carol Oates eram casados havia 47 anos e ela descrevia essa relação como a de duas almas gémeas que viviam em extrema cumplicidade e de forma muito imaginativa. Uma noite, véspera de anúncio da Academia Sueca, a escritora recebeu o telefonema de um jornalista que lhe garantia que ganhara o Nobel e queria a sua reacção. Ela não acreditou. Ele insistia. Quando desligou o telefone, Raymond perguntou-lhe quem era. Ela respondeu que era um jornalista a dizer que ganhara o Nobel. Ele deu uma gargalhada e disse-lhe que fosse dormir.

Há anos que se fala dessa possibilidade como uma hipótese provável. Mas o telefonema não tirou o sono a Joyce nem a Raymond. Agora não há aquela gargalhada que a situava. A morte do marido fê-la questionar-se sobre a sua nova identidade. Passara uma vida a escrever e, dizia então sem muitos ressentimentos mas como constatação, “uma vida levada a escrever não é uma vida”. Mais ainda: “Uma vida desperdiçada não é uma vida.” E, contudo, mesmo nesse momento negro, o único em que teve a mesma pulsão de morte de Sylvia Plath, escritora que Joyce Carol Oates considera ter chegado perto da perfeição literária com o seu único romance, A Campânula de Vidro (1963), há ironia. Quando conta que o bilhete que estava no carro que deixara mal estacionado no dia 7 de Fevereiro de 2008, tinha ela ido a correr levar Robert ao hospital, pouco mais de uma semana antes de ele morrer, não era uma multa. Dizia: “LEARN TO PARK STUPID BICH.” Tradução? Qualquer coisa como a parábola de Kafka em que a coisa mais importante sobre a vida de um indivíduo lhe é dita na rua por um estranho que vai a passar. Ou seja, o mundo lá fora continuava, indiferente à sua condição de pré-viúva (e depois à de viúva). É a explicação de Oates naquele texto, ali na qualidade de Mrs. Smith, como todos a conheciam, burocraticamente, fora da sua condição de escritora.

Foi talvez o seu momento mais real. Aquele em que a realidade abalou a fantasia e a levou a excessos que nunca cometera. Sempre foi moderada, como um filtro a deixar passar o pathos apenas para os livros. Mas, por uma vez, quis escrever sem a assinatura JCO, iniciais que não a largam. Um livro de luto sobre o que foi com Richard Smith, o homem de 30 anos que conheceu em 1961, tinha ela 22, estavam ambos numa universidade do Wisconsin. Namoraram três meses e casaram. “Eu tinha vergonha de lhe chamar Ray”, confessou então. Ele representava a maturidade, a segurança masculina que para ela tinha tido até ali o rosto do pai. A nenhum homem conseguia tratar pelo primeiro nome. Ray seria para sempre honey. Juntos foram ensinar no Texas e depois em Detroit. Ele era professor de literatura do século XVIII, ela de escrita. Juntos passaram o rio até ao Ontário e fundaram a Ontario Review, uma revista dedicada à cultura dos Estados Unidos e do Canadá. Foi em 1974. No número um, Joyce Carol Oates entrevistava Philip Roth. Ele já era um escritor de sucesso, ela começara a publicar em 1963. Estreara-se com uma colectânea de contos, By the North Gate, e em 1964 saia o primeiro romance, With Shudering Fall, uma história de amor em nada comparável à harmonia que a ligava a Ray. Com as personagens Shar e Karen, tudo era desespero.

 


Os olhos de Joyce

Além da ironia, também se pergunta por essa angústia no olhar de Joyce Carol Oates. É como se um sentimento e outro não fossem possíveis naqueles olhos grandes que parecem saltar do rosto pequeno moldado por cabelos ralos em caracóis mal definidos, lábios finos, sobrancelhas em arco, expressão nostálgica e voz tranquila. Uma fantasia, aquela imagem, como o mundo onde diz viver desde que a avó paterna, Blanche Woodside, lhe ofereceu a Alice no Pais das Maravilhas de Lewis Carroll. Tinha oito anos. Não sabia do passado da avó, filha de imigrantes húngaros (o pai suicidara-se e ela escondera sempre a sua herança judia). Joyce era a mais velha dos quatro filhos de um operário fabril e de uma dona-de-casa, a crescer numa zona rural do estado de Nova Iorque, sem ver projectadas em si outras ambições a não ser as que se esperavam de uma rapariga católica que aprendia a ser mulher nos preceitos da religião. Mas Alice chegou e mostrou-lhe o outro mundo onde diz ter passado a viver. Blanche e o seu segredo foram com ela e muitos anos mais tarde, em 1997, inspiraram-na a escrever A Filha do Coveiro (Sextante).

A memória tem uma sequência que não é a do romance realista onde tantas vezes Joyce Carol Oates se situa. Segue um caminho mais exaltado, no registo gótico que também aprendeu com a leitura de Franz Kafka, por exemplo. Ou com James Joyce, na sua errância interior por Dublin. Esse lado da infância visitou-a no tal momento negro, o do desespero, da fronteira de identidades. Ser mulher de... e passar a viúva de... O que significava isso para alguém que sempre disse ter pouca personalidade, que arranjou dois pseudónimos para assinar romances policiais meio góticos, Rosamund Smith e Lauren Kelly? Ser quase transparente, como se essa transparência ajudasse a que fosse habitada pelas muitas centenas de personagens que já criou. Marilyn em Blonde (2000), Rebeca, herdeira de um passado judeu escondido, em A Filha do Coveiro, a líder de um gangue feminino em Raposas de Fogo (1993); foi Clara Walpole, uma heroína em terra de agricultores brutos, e foi também o pai de Clara, um homem rancoroso que a tenta moldar à sua imagem, em A Garden of Earthly Delights (1964); foi ainda Loretta, Maureen e Jules em Them (1969), três raparigas à procura da normalidade numa América rural estrangulada pela pobreza e pelo preconceito; e ainda fez boxe, como Mike Tyson, por exemplo, em quem se inspirou para On Boxing, um ensaio publicado em 1987.

A sua característica mais pessoal será a de deixar essas vozes falarem através de si. “Ser” o outro. “Não sinto que tenha uma personalidade forte, mas estou intensamente interessada em dar voz a outros que podem ser muito diferentes de mim. Isto inclui homens, indivíduos que são o meu oposto, dos quais discordo em muitos aspectos. Sinto-me muitas vezes fascinada por pessoas que me parecem antiéticas em relação ao que sou e defendo. Acho que essa é uma característica que talvez partilhe com um grande dramaturgo como Shakespeare”, diz Joyce Carol Oates ao Ípsilon numa entrevista breve, e aceite quase de imediato (acompanhada pelo pedido de desculpas pelo pouco tempo que poderia dispensar-nos). Foi dias depois de completar 76 anos, a 16 de Junho, e poucos meses após a publicação de Cartaghe, o último dos seus 52 romances, onde é Cressida, uma rapariga que desaparece do meio rural deixando muitas questões por responder. Desapareceu? Fugiu? Foi raptada? Violada? Assassinada? O que aconteceu a Cressida? 

Mas em Cartaghe Joyce é também a irmã mais velha de Cressida, a virtuosa Juliet, temente a Deus, bonita, sem mácula. Sem o lado negro que habita a escritora.   

 


Um andróide?

A contabilidade ajuda a entender o fenómeno. Em 76 anos de vida, Joyce Carol Oates publicou 52 romances, 13 novelas, 37 contos, oito livros de poesia, seis livros juvenis e três para a infância; nove peças de teatro, 14 livros de ensaio; participou ainda em 21 antologias e assinou centenas de críticas literárias. Uma espécie de mulher do Renascimento, tal a abrangência, a qualidade e a quantidade da sua escrita. No mês marcado para se iniciar a rodagem da adaptação ao cinema do seu livro Blonde, onde ficciona a biografia de Marilyn Monroe (ver caixa), e em vésperas de saírem mais dois títulos seus em português, ambos pela Sextante — o volume de contos Terra Amarga (Novembro) e o romance Mudwoman (início de 2015) —, a escritora que vive em Princeton desde 1978 fala-nos sobre o que a faz querer continuar a escrever, lamentando apenas o tempo que foge. “Tenho muito, muito mais para dizer, muitas mais vozes para explorar e histórias para contar. Tenho, literalmente, pastas cheias de esboços de histórias e, em alguns casos, esquemas detalhados de romances.”

Quando é que Joyce fala como escritora e quando é apenas a mulher quase transparente? Às vezes não há resposta. Gosta de brincar com a sua condição de escritora/figura pública, ironiza sobre a vaidade do escritor. Diz que a escrita existe e o escritor não. Em A Fé de um Escritor (Casa das Letras), volume que reúne ensaios sobre a vida, a técnica e a arte originalmente publicados na Ontario Review em 2003, precisou que “os rumores” acerca da “existência histórica” de JCO lhe chegam em “terceira mão”: “É verdade que eu contemplo a sua fotografia — a minha ‘igual’ —, mas raramente se trata de uma imagem ‘igual’ de fotografia para fotografia, e a sua expressão é muitas vezes de vago espanto. Reconheço que partilho um nome e um rosto com ‘JCO’, sugere aquela expressão, mas não passa de uma mera questão de conveniência. Não se deixem enganar, peço-vos!” E depois: “JCO não é uma pessoa, nem sequer uma personalidade, mas um processo que resultou numa sequência de textos.” Terá sido por isso que Philip Roth (Newark, 1933) lhe chamou andróide ao aceitar o convite de um jornalista para jantar, alegando que não saía muito porque já não conhecia quase ninguém no mundo editorial, já quase ninguém era do seu tempo — a não ser Joyce Carol Oates?

Na indignação, Joyce Carol Oates é tão veemente quanto quando convence com a sua simpatia. Sem referir o caso, entusiasma-se ao comentar com o Ípsilon o anúncio do abandono do escritor, que considera uma reacção “pós-modernista”. “Não entendo que Philip Roth, cuja prosa é tão fácil de ler e tem sido tão divertida, tenha esta visão tão elitista e tão pós-modernista acerca da escrita. É que Philip Roth não escreveu o Finnegans Wake [último romance de James Joyce, 1939]. Se assim fosse poderíamos esperar que se retirasse depois de tanto esforço. Acho que a explicação mais prática é que o Philip sente que o seu público está a afastar-se dele. Os seus livros estão a vender menos. Mas talvez mude de ideias e volte, pelo menos com livros de não-ficção. Seria muito bem-vindo.”

Por onde começar com Joyce Carol Oates? Muitos críticos e estudiosos têm tentado responder a essa questão. Poucos entre eles terão lido a sua obra completa. Simplificando, o Rocky Mountain News tentou um breviário sobre a autora a que chamou Joyce Carol Oates for Dummies. Ela costuma usar o sarcasmo para falar desta sua “alta produtividade”, que aqui prefere, no entanto, deixar passar. É a sua persona literária, aquela que Oates deixa entrar todos os dias de manhã, o mais cedo possível, quando se senta à janela que dá para o jardim da sua casa em Princeton. “É, no meu entender, bizarro que as pessoas pensem que eu sou ‘prolífica’ e que devo utilizar todos os minutos livres do meu tempo, quando, na verdade, como os que me rodeiam sempre souberam, passo a maior parte do meu tempo a olhar pela janela. (Coisa que de resto recomendo)”, escreveu ainda em A Fé de Um Escritor.

É nesses momentos de solidão à janela que quase tudo nasce. Como? Do mesmo enigma que a levou a sentir a primeira experiência de escrita nos livros de colorir. Usa exemplos nesta conversa: “Um romance como Blonde ou Mudwoman assemelha-se a um rio onde correm muitos riachos. Ideias iniciais ficam em gestação; as personagens crescem e interrelacionam-se com outras personagens. E é desse cruzamento de personagens que nasce a história ou a intriga. Escrever um romance requer tempo, parece que precisa de viver desse processo de trabalho, que é parecido com o acto de viver com uma pessoa. Não se pode acelerar uma relação, como não se pode acelerar esse processo criativo. Ele aparece como interior, sente-se como interior, é orgânico e não pode ser forçado.” Insiste na palavra enigma. É essa a génese. A que a faz, por exemplo, olhar com alguma estranheza para o seu nome, OATES, escrito nas lombadas dos livros quando entra numa livraria. “É um termo descritivo. Não é um substantivo”, disse nessas memórias onde conta como foi forçada a pensar em si como um elemento isolado. No princípio há mesmo a solidão, o afastar do mundo para “criar um contramundo fictício”, como escreveu no prefácio de A Fé de Um Escritor. Aprendeu que era assim enquanto escrevia e destruía romances sem os publicar, num treino que a acompanhou no liceu e na universidade. Não tinha referências a não ser na leitura; na sua família não havia exemplos artísticos ou académicos. Foi a primeira a terminar o liceu num mundo onde, acredita, havia gente boa, sem outras camadas que não essa. Gente plana.

Quantas camadas tem ela? Na morte continua a solidão, mas de outro modo. Insuportável escrever. Pensou que a escrita acabaria, como a vida, só aturáveis graças aos comprimidos e às cartas e aos passeios com amigos como os escritores Edmund White (Cincinnati, 1940) ou Richard Ford (Jackson, 1944). Ford tinha um casamento longo como fora o dela. White fizera luto pelo amante vítima de sida. Joyce precisava de regressar à sua “transparência” para continuar, e isso não lhe pareceu possível até conhecer o neurocientista Charles Gross, ainda nesse Verão de 2008. Em Março de 2009 casavam. Passava pouco mais de um ano depois de a morte surgir como fim. Gross não é mencionado no livro do luto. Julian Barnes (Leicester, 1946), o escritor britânico que passou por experiência semelhante quando a mulher morreu — experiência que descreveu no livro Os Níveis da Vida (Quetzal), publicado originalmente nesse mesmo ano —, censurou-lhe publicamente a omissão do segundo marido. Não foi o único. Disseram-lhe que fora dissimulada no seu relato. Ela respondeu também publicamente a Barnes que o livro tinha apenas um objectivo: relatar o seu estado de perda, a sua condição de viúva, tal como a sentiu, e que muito do que foi escrito foi escrito na hora, apesar de o livro ter saído apenas três anos depois.   

Olha para si nesse tempo como para uma personagem que não era capaz de domar. Destruiu parte das coisas que a mãe lhe tinha deixado, deitou fora roupas. Não se entendia na sua dor. E depois encontrou vida e mudou de casa e continuou a escrever numa janela a dar para um jardim — e voltaram os demónios dos outros, a bestialidade, a segregação, a violência e a injustiça, que moldou à sua medida influenciada pelos mestres William Faulkner, Flannery O’Connor, D.H. Lawrence, Franz Kafka, Emily Dickinson, James Joyce e Virginia Woolf, que lhe ensinou que estilo é ritmo. Quando se encontra o ritmo, temos livro — isso é físico, lembra Joyce Carol Oates nesta conversa. Como o passo de corrida. Corria muito, agora menos. E nessa passada esboçava romances, e era natural que assim fosse, como se escrita e corrida fossem feitas da mesma matéria. Há uma paisagem. Escreveu isso em notas sobre técnica literária, onde ensinava que o verdadeiro método era ler muito os outros e depois tentar, sem medo de errar ou de não estar a ir segundo os cânones. Ser autêntico.

Talvez deixe a universidade este ano, depois do seminário de Outono. Mas ensinar faz parte do ritmo da sua vida, uma rotina aprendida há muito. Ensina como ser criativo na escrita. E a regra é? É fácil dizer que é não ter medo, mas foi o que ela disse a Jonathan Safran Foer (Washington D.C., 1977), em Princeton. Nunca o haviam incentivado a escrever na universidade até que ela lho disse. Ajudou-o a rever Está Tudo Iluminado, o romance com que ele se estreou em 2002 e que o tornou um dos meninos bonitos e talentosos das letras norte-americanas, com muitos livros vendidos em todo o mundo.

 

A sério?

Está escrito. Como está escrito que nada do que diz é para levar a sério porque vive na fantasia. Criada na religião católica, tornou-se ateia e talvez isso também fosse melhor para deixar entrar a imaginação. Nada de deliberado. Faz parte do tal processo. Não necessariamente evolutivo, no que Darwin entendia sobre as espécies. Escreveu num ensaio que o escritor é a negação dessa teoria. Tem-se destacado a defender direitos humanos. No passado domingo, indignava-se no Twitter por não haver explicação para o facto de o corpo do jovem assassinado com seis disparos de polícia no Missouri ter ficado quatro horas na rua até ter sido retirado. Usa as redes sociais para estes desabafos, como lhe chama. Coloca vários posts por dia, nos intervalos da escrita, da jardinagem, da leitura, das palestras e das conferências a que não se recusa. Tenta, como uma personagem de ficção, não estar limitada ao tempo, mas não existe nenhuma ideia de deificação, garante, nessa atitude. E é aí que volta ao papel dos escritores. Podem deixar textos que fiquem na memória. E que mais? “Os escritores, de ficção ou não-ficção, têm hoje um papel muito menos proeminente do que alguma vez tiveram na cultura. Esse papel que era deles há umas décadas pertence agora ao cinema e à televisão por cabo. A sério. Também são trabalhos de escrita com qualidade da boa, ficção substancial.” Quais? “Breaking Bad, Mad Men, Oz, House of Cards.”

Voltamos aos demónios. À luta do real com a ilusão, até acontecer a coabitação necessária à sua literatura. Não, não inventou a tradição de se inspirar em factos, tenta dizer. Acontece-lhe quase sempre. Mas pode não... “Ao longo dos séculos, a maior parte da ficção nasceu de factos históricos ou de temas contemporâneos. Até mesmo livros fantásticos — leia-se de fantasia — como Frankenstein (1818), de Mary Shelley, estavam muito próximos dos temas da sua época.” Daí a escrita sobre violência — “Não podemos virar costas ao mundo” — ou sobre questões à volta dos direitos das mulheres. Não é escrita de mulheres. É feita por uma mulher, quer precisar. Talvez seja por trazer assuntos considerados domésticos. Num podcast gravado há cerca de dois anos para uma estação de rádio norte-americana, dizia que nos livros escritos por homens não existem constipações, que isso não cabe nas aventuras masculinas que constituem a grande fatia da literatura mundial. 

Em Mudwoman, o próximo romance de Joyce Carol Oates a ser editado em português, está isso. A atenção ao lado negro, mas com a clareza da escrita a que Oates habitou os leitores, na sensação de empatia — de conseguir estar no lugar do outro — que consegue criar. “O romance não é apenas sobre ‘violência’. Na verdade essa é uma pequena parte da história e está logo no início. Mudwoman é a história da urgência de uma rapariga que vive em circunstâncias desesperadas, que é adoptada e educada por um casal da classe média que a ama e a leva para um universo meio académico que foi basicamente criado contra as mulheres. Com o seu talento excepcional, a sua inteligência, o seu engenho e a sua dedicação, ela ascende na hierarquia e torna-se a primeira mulher a presidir à Ivy League, uma das posições mais prestigiantes do mundo universitário. É então, que, sob pressão do passado e do seu próprio perfeccionismo, ou do que podemos chamar o seu idealismo naïf, ela começa a tropeçar e cai. Começa um processo de reconstrução pessoal e recupera-se na sua força. Mudwoman é acerca do triunfo sobre a privação na infância. Nada fácil. Um triunfo que se deve a muito esforço e a muita concentração. E também é uma história de amor invulgar, como se sentíssemos que os amantes se irão reconciliar. Mas isso é depois de o romance acabar.”

Tudo fantasia, nada de biográfico? Talvez uma frase. Em que Joyce Carol Oates dizia que não tinha o impulso de morte de Sylvia Plath.  

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