José Manuel Cortês: “Os escritores devem ser apoiados directamente pelo Estado”

O director-geral do Livro está preocupado com a cada vez maior invisibilidade do escritor. Já não há Saramagos e assistimos a um definhamento da projecção pública da literatura.

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José Manuel Cortês trabalha na área dos livros desde 1987 Daniel Rocha

José Manuel Cortês considera a Feira do Livro, que está agora a decorrer em Lisboa, o acontecimento ligado ao livro mais importante do país.

Há quase 30 anos a trabalhar na área do livro, o responsável pela Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB) defende a criação de um programa de promoção da leitura que permita “empregar” os escritores na divulgação da sua obra para aumentar o número de vendas e de leitores. Para isso, pode utilizar-se a rede de festivais literários, eventos que começaram a surgir um pouco por todo o país, muito por iniciativa das autarquias. Quanto às bolsas para escritores, elas fazem sentido, mas seria preciso uma reflexão antes de as reactivar.
Nesta longa entrevista, feita no seu gabinete na Torre do Tombo, não couberam os arquivos, que também tutela, e algumas coisas que deverá ser o secretário de Estado da Cultura a anunciar, como a revisão da lei do preço fixo do livro.

Trabalha nesta área desde 1987. De todas as políticas da promoção do livro que viu ou de que fez parte, quais o entusiasmaram mais? O que é que funcionou?
Há duas áreas que me entusiasmaram pelos resultados. Uma é a internacionalização da literatura portuguesa, na qual em certos aspectos fomos pioneiros com programas de apoio à tradução, em que editores estrangeiros concorrem para publicar autores portugueses nos seus países. Não tínhamos exigências maiores e essa maleabilidade facilitou o acesso. Outros países, como o Brasil, resolveram adoptar essas práticas. Sempre foi uma política da casa não ser dirigista. Não temos, nem sequer achamos que seja correcto, um cardápio de autores e de obras.

Querem evitar uma política de gosto.
Isso mesmo. Dar abertura aos editores para fazerem o seu catálogo dos autores portugueses.
Outra área que foi fundamental para o país é a Rede Nacional de Bibliotecas Públicas. É relativamente consensual que transformou alguma coisa em Portugal em termos de hábitos de leitura e de acesso ao livro, principalmente nas populações mais carenciadas.

Participou numa comissão de avaliação do programa das bolsas de criação literária. Considera que os escritores devem ser apoiados directamente pelo Estado?
Acho convictamente que sim, que devem ser apoiados directamente pelo Estado. Acho estranho, e agora estou a falar quase a título pessoal, é que por exclusão se dê um estatuto diferente ao criador que é escritor.

Acha estranha a não existência de apoios?
Um programa de bolsas, a funcionar em moldes diferentes, tem sentido.

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Qual era a correcção que faria?
Necessitava de uma reflexão. Por exemplo, no antigo programa era exigido um ano sabático exclusivamente dedicado à criação literária. Poucos estavam em condições de responder à exigência. É difícil para um patrão, principalmente em médias e pequenas empresas, deixar o seu empregado escrever durante um ano e depois voltar. Houve vários que disseram que tinham dificuldade em manter o vínculo profissional. Acabava por funcionar mais para os funcionários públicos.

Acha que os escritores são discriminados em relação aos apoios públicos à criação.
No regime de bolsas isso é evidente. Mas há outras formas de apoio aos autores. A internacionalização, por exemplo, é uma das formas. Outra forma indirecta é o programa de apoio a prémios literários que também temos.
Importante era a constituição efectiva de um programa de promoção da leitura que permita “empregar” os autores na divulgação da sua obra.

Ligado às bibliotecas?
Não só. As bibliotecas são evidentemente um instrumento fundamental, mas existem outras formas. Uma das coisas positivas ultimamente no nosso país é a criação de uma rede de festivais literários. Essa rede, na generalidade resultado de iniciativa autárquica, pode ser uma forma também indirecta de apoiar o autor.

A ideia é apoiar esses festivais, que convidam os autores? E está a pressupor que esses convites são pagos?
Pressupõe-se que esse convite é pago. Há dois segmentos fundamentais em que a política de promoção da leitura deve ser feita: no domínio do autor e no do leitor. Toda a sustentabilidade do sistema tanto para os criadores, como para os editores, como para os livreiros tem que ver com o desenvolvimento dos hábitos de leitura e do consumo de livros em Portugal. Portanto, acho que o Estado em termos gerais – e não estou a falar especificamente da DGLAB — devia trabalhar intensamente nesta área. E porque é que acho que isto é importante? Porque as relações contratuais que os autores têm com os editores fazem com que recebam à percentagem dos livros que vendem. Por isso, a melhor forma de apoiar o autor indirectamente é através do aumento do número de leitores e de consumidores de livros. Não tenho dúvidas nenhumas sobre isto.

Também é menos polémico apoiar o leitor, em vez do escritor.
Não é isso. Acho mesmo que é a melhor forma de sustentar todo o sistema. Com raras excepções, o autor não subsiste em condições com a venda de direitos. Isso tem que ver com as características do mercado português e é por isso que a internacionalização também é importante para o autor, porque obtém outros direitos. No fundo tudo isto se encaminha para o autor. Uma rede de festivais literários como acontece em França, no Brasil ou em Espanha pode ser uma forma de dar “trabalho” aos autores em termos de divulgação da sua própria obra e isso ser também uma forma de aproximação com o leitor.

Ao mesmo tempo, há nisso uma parte perversa, em que os escritores para sobreviverem se vêem constantemente em festivais pelo mundo fora e não conseguem escrever.
É evidente que isso acontece, mas não há outra forma. De facto, a sustentação do autor é feita pelas suas vendas e das relações contratuais que tem com os editores. Acho que os editores já fazem um esforço significativo em termos de pagamentos de direitos. Portanto, o autor é obrigado a criar uma situação de equilíbrio entre uma coisa e outra, pressupondo que o seu trabalho não é estritamente escrever, mas é também promover a sua obra.

Começou a maior feira do livro no calendário português. Como é que vê este evento e a sua ligação à promoção da leitura? Pela sua experiência haveria alguma coisa a mudar no modelo?
O modelo tal como está é bom. Já se discutiu muito no passado porque é que não seria o modelo do Salão do Livro de Paris ou das bienais brasileiras [num espaço fechado com entrada paga]. A Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL) tentou o modelo do salão do livro e foi um fiasco.
Há já uma tradição do modelo actual da feira. Tem uma dimensão muito popular e isso é positivo. É evidente que é fundamentalmente um evento comercial, mas a APEL tem feito um esforço muito grande para diversificar as actividades entre o lúdico e o mais sério.
A feira do livro possibilita que se fale de livros de uma forma muito ampla, criando um momento de excepção na reflexão sobre o livro, a meu ver um acto muito relevante de promoção da leitura. É provavelmente o acontecimento ligado ao livro mais importante do país.

Apoiam a feira de alguma forma?
Neste momento não apoiamos a feira do livro.

No mundo dos livros, assistimos cada vez mais à concentração editorial, com a compra das pequenas editoras pelas grandes, e à concentração da venda de livros, com o desaparecimento das livrarias tradicionais. Há alguma maneira de ver este cenário com optimismo?
A coisa mais preocupante tem que ver com a concentração dos canais de distribuição e comercialização.

Por isso, as livrarias.
As livrarias. Os dados da APEL revelam dois fenómenos muito preocupantes: há uma percentagem muito grande da comercialização do livro que é feita pelas grandes superfícies e pelas grandes livrarias, cujo objectivo fundamental é o livro de circulação rápida. A única forma de “combater” esta tendência é com a existência de uma rede livreira diversificada.

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Tem alguma ideia do número de livrarias que encerram?
A APEL tem um estudo de Setembro de 2014 muito interessante, porque faz um ponto da situação da rede livreira. Um dos dados é de facto a diminuição das chamadas "livrarias independentes", que é uma definição um pouco ambígua. E o afunilamento de uma boa percentagem da oferta editorial para estes canais. Isso é preocupante para quem se interessa por livros, porque há uma certa tendência para reduzir a diversidade.

Então não há uma possibilidade de olhar para o fenómeno com algum optimismo?
[Grande silêncio]. A resposta quem a pode dar são os próprios editores e livreiros. Não quero chocar ninguém com isto, mas nunca tivemos em Portugal uma rede livreira muito forte. A crise tem afectado ainda mais.
A única forma de combater isso é a diversificação do tipo de serviço prestado pela livraria. Era interessante definir, como em Espanha, o mérito cultural das livrarias, que neste momento não existe, e fazê-lo também em relação às actividades que complementam a actividade principal como livreiro. Era importante transformar um pouco uma livraria numa tertúlia.
Para competirem, a única forma é tentarem criar um clima em volta da experiência da leitura, que crie mecanismos presenciais de ida às livrarias. Acho que uma das formas que o Estado tem de ajudar as livrarias é com a lei do preço fixo. Neste momento, está em revisão.

Mas a lei do preço fixo do livro não é uma ficção?
Não pode ser uma ficção. Existe um relativo consenso tanto nos livreiros como nos editores sobre a sua necessidade e manutenção. A lógica que está em cima da mesa é de aperfeiçoar a lei.

O que procura essa actualização da lei?
Deve ser a tutela a falar. Posso dizer que a proposta de revisão visa aperfeiçoá-la e torná-la mais eficaz.

Não estávamos à espera que fosse para piorar…
A fiscalização da sua execução é um dos problemas fundamentais. O quadro sancionatório que está lá é em escudos… Estão a ver o absurdo.

Portugal foi país convidado da Feira de Bolonha, em 2012, e da Feira de Bogotá, em 2013. Que acompanhamento ou continuidade foi dada a essas apostas?
Esse é um dos problemas fundamentais deste tipo de iniciativas. Neste momento, em termos orçamentais, podemos estar sempre presentes com stand em Frankfurt e Bolonha (livro infantil). São as mais importantes em termos da promoção do autor português e da literatura portuguesa. No caso de Bogotá, uma feira regional decisiva para dar uma certa projecção à literatura portuguesa no espaço da América Latina. Este ano o Jerónimo Pizarro [que foi curador da presença portuguesa em 2013] conseguiu fazer novamente com o Camões-Instituto da Cooperação e da Língua um stand e a deslocação de alguns autores. Acho notável o empenho do Jerónimo. Em anos futuros, temos alguma dificuldade em acompanhar estas feiras regionais. Temos alguma fragilidade em termos de continuidade. Mas como fazemos sempre um apoio específico à tradução de obras, nos anos seguintes aumenta, na generalidade, o número de obras editadas neste países.

Em que país é que esse apoio à tradução resulta mais?
Com variações, Espanha, França, Itália, também na Alemanha, alguma coisa na Croácia e Sérvia. Uma média de quatro, cinco, seis obras por ano. A média desceu por causa de uma variação no financiamento. Mas uma das coisas fundamentais neste programa volta a ser a promoção da leitura, porque nós temos de ter público nos diversos países para os editores estarem interessados em publicar autores portugueses.
É fundamental que o autor português esteja presente em eventos no exterior — e nisso o Camões tem feito ultimamente um esforço muito maior do que nós —, organizados pelas universidades, pelos editores, presentes em festivais e feiras do livro. E os nosso autores até têm uma boa relação com o público e com a comunicação.
Não escondo que tem havido redução de verbas, mas era fundamental que se projectasse mais o autor e as obras portuguesas. A projecção da língua portuguesa e dos autores portugueses tem implicações que superam a área do livro, da leitura e da literatura, ponto final parágrafo.
Acho que a literatura portuguesa tem provado que é um instrumento importante para projectar a marca Portugal no exterior. Estou a falar do AICEP. Porque não agregar  ao Turismo de Portugal as presenças portuguesas no exterior? Não há mal nenhum.

Está previsto que Portugal seja país convidado em mais alguma feira?
Neste momento não está.

Se tivesse possibilidade, onde é que gostaria que fosse?
Houve uma altura em que se falou muito de Guadalajara. Mas as grandes feiras da América Lantina, que é o caso de Guadalajara, são grandes eventos culturais, em que a pretexto do livro se fazem muito mais coisas. São operações muito caras. Quando Itália foi país convidado, custou três milhões de euros. Por isso tem de ser perspectivado como um investimento cujos resultados ultrapassarão em muito a área do livro e da cultura.

E o Brasil?
O Brasil tem um programa específico, para o qual trabalhei muito, porque no final dos anos 90, e isso era muito preocupante, tanto o livro português como as obras portuguesas eram francamente escassos. Criaram-se programas específicos de apoio à edição de autores portugueses no Brasil, apoiando editores brasileiros a publicar, e isso correu muito bem. Os editores portugueses a trabalhar no Brasil também podem concorrer. Isso aumentou de maneira tremenda, chegámos a ter 30 e tal obras editadas por ano. Entre 2003 e 2014 foram apoiadas 318 obras. A média anual anda na ordem dos 27 títulos.
Até 2006 tivemos uma presença regular com stand nas bienais do Rio e de São Paulo, numa acção conjunto da DGLAB e do Camões. Tudo isso passou e desde essa altura que não estamos presentes, o que não é positivo, porque essas bienais são eventos importantíssimos.

Porque é que acabaram as feiras organizadas nos PALOP? Estamos a perder terreno nestes territórios da língua portuguesa?
Fazíamos regularmente feiras do livro, que ainda eram operações dispendiosas. Neste momento, canais de comercialização do livro a funcionar com alguma regularidade acontecem em Angola e Moçambique e com tibieza em Cabo Verde.
É evidente que a promoção da língua portuguesa nestes países se faz por muitos canais, mas tinha de haver uma política constante e consistente na área do livro. Não falo simplesmente da venda de livros – era também na organização das entidades que estão relacionadas com as bibliotecas, com apoios na criação de planos nacional de leitura.

O objectivo da Rede Nacional de Bibliotecas Públicas era construir uma em cada município. Esse objectivo foi reavalidado ou continua a fazer sentido neste mundo cada vez mais digital?
Acho que o serviço de leitura pública deve ser concedido ao cidadão onde ele se encontrar. A questão é como se faz esse serviço. Está-se a alterar de dia para dia a realidade demográfica do país de uma forma muito acentuada. Temos municípios que não atingem os patamares mínimos para a construção de uma das bibliotecas mais pequenas (5000 habitantes). Por isso esse objectivo penso que já não tem muito sentido. Têm de ser perspectivadas outras formas de serviço de leitura – por exemplo, através de redes de bibliotecas itinerantes. Entretanto, houve outra realidade positiva que foi a construção da rede de bibliotecas escolares, que vem entrar em complementaridade. A estratégia a curto prazo é a constituição de redes regionais, intermunicipais, de bibliotecas. Começam a aparecer, demos agora um prémio à constituição formal da primeira em Aveiro. Isto levanta inúmeras questões, e não quero ser mal interpretado, mas pode ser por esse canal que se generalize o serviço de leitura pública aos municípios mais carenciados.

Há fundos europeus para essa rede regional? É por isso que surge?
É isso mesmo. A cobertura de Portugal continental com bibliotecas municipais é muito elevada. Um estudo, que me pareceu demasiado optimista, falava em 95%. Isto quer dizer que há muitas bibliotecas de iniciativa municipal que não foram feitas de acordo com o programa, que não têm todas as valências que devem ter, mas funcionam. O que queremos fazer é alargar esta rede a bibliotecas que não foram criadas directamente por nós.

Há pouco, quando falava de livrarias, defendia que deviam oferecer outros serviços que não só ligados à venda do livro. Defende o mesmo para as bibliotecas?
Esse prémio das boas práticas foi extremamente meritório, porque eram as bibliotecas que concorriam. Fiquei muito contente, porque deu um retrato muito diversificado do tipo de prestação de serviços que uma biblioteca pode fazer. É evidente que num país como o nosso cativar gente para as bibliotecas é extremamente difícil.
Os nossos bibliotecários perceberam isso e dão apoio à população por diversas vias. Temos municípios com população que passa a maior parte do dia em centros de dia, que está até imobilizada. Umas das coisas notáveis é que os bibliotecários, e o poder local em conjugação, saíram da biblioteca para dar apoio às comunidades nos centros de dia, colocando livros e dando orientação de leitura. Estão a fazer um trabalho muito importante para a inclusão social dessas populações.
Alguns projectos, muito bem organizados, davam alfabetização electrónica para eles entrarem no Facebook e saberem utilizar o Skype, porque muita gente tem família espalhada pelo mundo inteiro. Isto melhorou muito a qualidade de vida daquela gente. As bibliotecas devem ser entendidas fundamentalmente como centros de documentação e informação e, se puderem dar um contributo em termos de formação e integração das pessoas, dar-lhes meios para essas comunidades se constituírem como cidadãos, porque não?

O último ano em que houve programa de promoção de leitura foi em 2010. Era uma das suas prioridades e já passaram vários anos.
Nesta altura, já acho que o programa não deve ser só de promoção do livro. Estamos neste momento a concluir todos os financiamentos por via dos contratos-programa para a rede de bibliotecas públicas e achamos que era fundamental a constituição de um programa em complemento com as autarquias que contribuísse para reactivar algumas bibliotecas que perderam dinâmica e estão muito fragilizadas. O programa está todo desenhado: contribuir para a construção de redes intermunicipais (carrinhas, etc.), aquisição e renovação de fundos, substituição de equipamentos informáticos. Por isso, é reconverter parte dessa verba, que este ano passa dos 1,6 milhões de euros, e focá-la nas bibliotecas mais carenciadas. O objectivo era começar o programa em 2016.

Ainda na lógica da promoção, falou de prémios literários. Quais são os que a DGLAB apoia?
O Camões, que é um prémio de Estado. O Prémio Nacional de Ilustração, que tem sido bastante útil. E depois temos alguns de instituições, do PEN, da Associação Portuguesa de Escritores (Grande Prémio de Romance e Novela), que financiamos quase na totalidade. Há um prémio dos críticos literários que nós também financiamos.
Acho que os prémios se devem manter, mas a lógica tem sido um pouco pervertida. Uma das maiores expectativas dos nossos escritores é ganhar um prémio para obter algum desafogo económico. De repente os prémios, que deviam ser coisas de excepção, tornaram-se para muitos quase formas de subsistência. Estou a exagerar, mas é esse o sentido.

Mas até já houve mais prémios…
Um dos objectivos fundamentais devia ser projectar a obra no próprio público. Neste momento a maior parte dos jornais, e o resto da comunicação social, não divulga sequer os prémios. O Grande Prémio de Romance e Novela, que é provavelmente um dos mais antigos, nos primeiros anos provocava uma repercussão tremenda. E isso tinha consequências imediatas na venda do livro. Uma das coisas que me preocupam é a redução do papel da instituição literária.

O que é que isso quer dizer?
Continua-se a publicar autores novos. Mas em diversas valências, desde as universidades às entidades ligadas à criação, há um claro definhamento da projecção pública da literatura há mais ou menos dez anos.

Isso é o papel do escritor como um intelectual?
Isso mesmo, em todos os aspectos. Em termos globais, poucas coisas há positivas, uma delas tem sido a criação de festivais literários, que tem aumentado durante esta década. Mas a questão do livro, da literatura, o debate à volta dessas coisas, tem claramente diminuído na sociedade portuguesa.

A presença do escritor, porque a presença do livro terá aumentado… Suponho que as pessoas leiam mais do que há 30 anos.
Há mais hábitos de leitura e há muito mais canais de leitura.

Por isso, no fundo, foram o estatuto social do escritor e da literatura que mudaram. O escritor deixou de ser um intelectual com um valor elevado?
Isso mesmo. Lembro-me que até se perguntava ao Eduardo Prado Coelho o que é que ele achava dos soutiens das senhoras.

Há a sociedade do espectáculo, o próprio criador ou se consegue transformar em parte desse espectáculo... E aí voltamos aos festivais e à sua performance pública.
Estamos sempre na área da performance. Eu sei que é verdade… Mas o intelectual não precisa de pôr o nariz de palhaço. Penso que neste momento há um decréscimo da literatura na vida do país em termos gerais. Isso tem que ver com o tipo de livro que se está a comercializar também. Não estou a dizer que não é importante a existência de todo o tipo de livros, de formas de leitura, nem sou contra a existência do espectáculo, nem vamos entrar em maniqueísmos…

Está com saudades de Saramago?
Não é isso… Mas o livro e a literatura podem trazer a capacidade de um certo sentido crítico que é uma das coisas fundamentais. O livro continua a ser, para lá do suporte, qualquer coisa que é transversal em todas as actividades. O que eu vejo é que há uma clara desvalorização do papel do livro, em todas as suas valências.

E isso tem uma consequência política? Sentem essa fragilidade no vosso trabalho?
Claro. Se em termos sociais há uma fragilidade, pode trazer uma fragilidade política e, portanto, dificuldades em termos de intervenção.

Acham que estão em desvantagem em relação ao cinema e às artes plásticas?
Não quero pôr isso nesses termos. Criou-se um bocado o clima no país, e não é de agora, de que o escritor não precisa de apoios especiais. Há uma permanente atitude de desvalorização.
Lembro-me de o Francisco José Viegas, quando já era secretário de Estado, dizer que a indústria editorial, que é a maior indústria cultural do país e de produção de conteúdos, sempre pouco ou nada precisou do Estado. Isto cria a sensação, embora o que ele esteja a dizer seja verdade, que a intervenção pública nesta área é menos relevante. Não se fala de produzir filmes sem isso…

Por isso, o apoio ao escritor é muito importante para si?
 É a criação de um clima em que o livro seja uma coisa comum que é fundamental. Na maior parte dos países, os programas de debates literários de projecção nacional são muito importantes. Isso faz parte do papel da promoção literária. A minha experiência na televisão portuguesa mostra que, quando isso acontece, quando há programas em horários mais nobres, tem reflexos imediatos em termos de vendas.

Está a falar da invisibilidade do escritor?
Um bocado. É evidente que nos últimos anos, e isso é uma coisa também positiva,  o livro se tornou um objecto de consumo, mas isso não arrastou a literatura. É necessário desenvolver o sentido crítico na própria leitura.

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