Jogos literários

Em sete textos de uma escrita crua e rugosa, Rui Zink parece querer transformar a realidade numa coisa inverosímil, mas não a sua ficção. E consegue.

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Nos contos que compõem o novo livro de Rui Zink, o mundo parece estar a ser reescrito por um demiurgo meio enlouquecido ENRIC VIVES-RUBIO

A par do começo do romance Cem Anos de Solidão, de García Márquez, o da novela A Metamorfose, de Kafka, é provavelmente um dos mais conhecidos da história da literatura: “Um dia de manhã, ao acordar dos seus sonhos inquietos, Gregor Samsa deu por si em cima da cama, transformado num insecto monstruoso.” Sem mais explicações, e com uma frieza que parece exarada num relatório de um diligente e atento amanuense, Franz Kafka remete de imediato o leitor para o absurdo do seu universo. Essa novela do escritor checo foi, ao longo de quase um século, motivo de inspiração para muitas outras obras (García Márquez, por exemplo, confessou a sua enorme influência sobre Cem Anos de Solidão).

Em A Metametamorfose, o conto que abre e que dá o mote para o título do mais recente livro de Rui Zink (n. 1961), o autor como que “reescreve”, em modo reduzido, a novela do autor checo. Mas desta vez, ao acordar de manhã no seu “esquálido quarto” para ir apanhar “o comboio das sete e vinte”, o caixeiro-viajante Gregor Samsa, que vive com os pais e a irmã num modesto apartamento, descobre “com desalento que ainda era uma pessoa normal”, “tristemente normal”. A ficção verosímil de Kafka é transformada por Zink numa espécie de realidade inverosímil, as primeiras e legítimas expectativas do leitor quanto à natureza de Gregor Samsa são de imediato abalroadas, o esperado acontecimento insólito, para todos evidente como uma fatalidade, não chega sequer a dar os primeiros sinais. Tudo se mantém na memória do leitor (e também nas memórias dos pais de Gregor Samsa, que se referem a isso com expectativa mas também com descrença e desilusão da própria ficção de que fazem parte). A normalidade do pacato caixeiro-viajante, que é acordado pela mãe, faz abluções matinais numa bacia e não muda de meias, passa a ser vista como anormalidade. O humano que acorda humano visto como “mesquinho egoísta” e “vergonha da família”: “É sabido e conhecido, vem até nos livros: o que adormeceu humano pode acordar abominação, o que se recolheu abominação pode despertar humano (…). Por vezes pode até acontecer o que entrou humano sair monstruoso. Ou, pior ainda, o que entrou humano sair humano.”

Sempre num registo cru ao longo dos sete textos que compõem esta colectânea, numa escrita que de vez em quando parece encher-se de maneira propositada de rugosidades, e que atinge o auge no estranho texto que é Largar Kristeva (um diálogo hilariante entre dois amigos sobre sentimentos amorosos, tendo por fundo reminiscências shakesperianas, escrito originalmente em inglês e depois vertido para português pelo Google Translate), Rui Zink desafia convenções literárias, faz jogos com o leitor, finge vontades de verosimilhança, inverte expectativas, deixa de tal maneira a ficção em fanicos que ela acaba a duvidar da própria realidade. O mundo parece estar a ser reescrito, em jeito de esboço, sem tempo nem paciência para correcções, por um demiurgo meio enlouquecido, cínico e desiludido. “Um escritor nunca acredita em Deus. Não pode. Como poderia? Um escritor que acredite em Deus está tramado. Não conseguirá ser escritor. A tessitura de um romance pede um misto de crença e descrença. Crença na nossa capacidade de reescrever o mundo; descrença na capacidade do mundo de ficar melhor do que o que é.”

A função do escritor (ou talvez a sua ausência de função) parece ser o tema do segundo conto do livro, O jogo literário. Num despretensioso e cómico monólogo cheio de ritmo, um escritor tenta escrever um romance que nos irá redimir a todos “dos nossos erros, da nossa mesquinhez, da nossa má fortuna, dos nossos desamores incinerados e encardidos”, mas os trabalhadores do prédio onde habita teimam em cortar a electricidade impedindo-o de escrever no computador e pondo em risco o que, pretensamente, já está escrito. Este curioso monólogo serve ao autor para ir iluminando algumas “ideias feitas” sobre os escritores, a escrita e a teoria literária. “Ser escritor é isto: fingir que trabalhamos a superfície, a fim de escavarmos o que nos cala bem fundo. Dizer as palavras para fazer falar o silêncio. Ser escritor é isto. É isto ser escritor.” 

Nas restantes quatro “fermosas morfoses” — Monzeit (a história de uma figura quase etérea que sobrevoa a vida cultural de Lisboa), Aquashow (um texto arrojado, escrito em verso, em que uma multidão espera na Costa da Caparica uma onda gigante), Pandora Boxe (um texto teatral que disseca impiedosamente uma relação de amor) e A gaivota e o peixe —, Zink continua a sua talentosa desmontagem da realidade. “Porque a realidade é perder. Perder é que é real. Não conseguir fazer as coisas que nos propomos fazer é que é real. A verdade está aí, a essência da vida está aí: no fim todos morremos, até o herói, até o filho de Deus feito homem morre.”

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