“João Bénard da Costa era o professor que gostava de ter tido e não tive”

Manuel Mozos apresenta no Doclisboa o seu filme sobre o crítico e programador que serviu de referência a uma geração. Um filme sobre o seu pensamento mais do que sobre a sua vida

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Manuel Mozos

“Para mim, o João Bénard da Costa era o professor que gostava de ter tido e não tive,” sorri Manuel Mozos, cineasta, de 55 anos. “No ano em que entrei para a Escola de Cinema, ele tinha [deixado de lá dar aulas], mas de algum modo o que me levou para lá foram os Ciclos de Cinema Americano dos anos 30, 40 e 50 na Fundação Calouste Gulbenkian [nos anos 1980], que para mim foram muito marcantes. Para mim, é daquelas figuras tutelares que têm vindo a desaparecer – só no âmbito do cinema, o António Reis, mais recentemente o Paulo Rocha e o Fernando Lopes...”

Fica assim explicado o tom elegíaco, “fantasmático” nas palavras de Mozos, de João Bénard da Costa – Outros Amarão as Coisas que Eu Amei, a longa-metragem que o realizador de Xavier e 4 Copas propõe no concurso português do Doclisboa (São Jorge, quinta 23 às 22h00, e Ideal, sexta 24 às 19h45). João Bénard da Costa (1935-2009), professor, crítico, programador, actor e durante 30 anos indissociável da Cinemateca Portuguesa, é um dos nomes incontornáveis do meio do cinema em Portugal. Para a geração de Manuel Mozos, contemporâneo de Teresa Villaverde, Pedro Costa, Vítor Gonçalves ou Joaquim Leitão na Escola de Cinema do Conservatório Nacional, Bénard da Costa foi uma das referências tutelares, mesmo que não fosse exactamente consensual.

Também por isso, o seu é um filme que procurou ser “de afecto” sobre a pessoa, como refere ao PÚBLICO. “Havia muitas maneiras de abordar a vida e a obra do João, mas a mim não me interessava ir para uma coisa estritamente biográfica. Queria muito mais [trabalhar] sobre o seu pensamento, o prazer que tinha em determinadas coisas – tentei encontrar, naquilo que consegui conhecer do João, coisas que eu sentisse que eram sentidas para ele, que fizessem sentido num filme que ele pudesse fazer.”

Outros Amarão as Coisas que Eu Amei é construído a partir de uma montagem de excertos de escritos de João Bénard da Costa, maioritariamente das crónicas que publicou durante anos em O Independente e no PÚBLICO e foram posteriormente reunidas em livro. Sobre elas, Mozos alinha imagens de arquivo, visitas a alguns dos lugares marcantes da sua vida, cenas de filmes em que entrou como actor (como Espelho Mágico, de Manoel de Oliveira) ou de filmes que apaixonadamente defendeu (da Palavra, de Carl Th. Dreyer, ao inevitável Johnny Guitar, de Nicholas Ray). Também pela exposição pública – invulgar para um crítico e divulgador – que Bénard da Costa teve, este é um filme que quase pede ao seu autor que fique “na sombra”. O realizador anui. “Estou de algum modo a vampirizar os textos, os lugares que ele habitou, a invadir o seu território, o seu mundo, e isso permite-me desaparecer e ser o João a estar realmente no centro. Tentei dar-lhe a palavra; como se a sua presença fosse quase a de alguém que está vivo.”

Não deixa, por isso, de ser um filme de Manuel Mozos, já que Outros Amarão as Coisas que Eu Amei “cruza” as abordagens dos seus dois documentários mais conhecidos: Olhar o Cinema Português (1996), para o qual entrevistou João Bénard da Costa num dia de filmagens do qual sobrou muito material por usar, e Ruínas (2009), olhar sobre instalações e espaços públicos abandonados por Portugal fora. “Para mim, essa espécie de triângulo faz todo o sentido. Uma das ideias que havia era utilizar o que tinha sido filmado para o Cinema Português, mas acabou por servir mais como material de apoio. E o Ruínas tem, de facto, esse lado de eco, mais fantasmático – como se cruzando os dois desse nisto!”

Uma coisa é, para Manuel Mozos, certa: esta não é a “história oficial” nem a única visão possível de João Bénard da Costa. “Isto é um filme meu sobre o João Bénard, mas não fecha a pessoa nem a obra. Poderá haver outros filmes feitos por outras pessoas com outras abordagens completamente diferentes.”

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