Jesus Cristo, afinal, são dois

Uma boa ideia que é malbaratada e que, em metade do livro, se limita a copiar, sem o dizer, o texto bíblico

A estrela que aqui fica a etiquetar este livro é injusta para metade do seu conteúdo: é mais ou menos essa a dimensão do texto que Philip Pullman, o autor da trilogia “Mundos Paralelos” (na base do filme “A Bússola Dourada”), cita dos evangelhos, literalmente ou com pequenas variações. Esses excertos, convenhamos, são geralmente bem escolhidos, literariamente fortes, poeticamente belos, mas o autor do livro nunca identifica a sua origem. O que se pode considerar desonesto, tendo em conta que muitos eventuais leitores não conhecem o texto bíblico que lhe dá origem. Para esses excertos, caberiam três ou quatro estrelas.

O problema de Pullman, neste livro, é que uma ideia que poderia ser interessante é malbaratada de modo inapelável. A saber: Jesus e Cristo são, afinal, duas pessoas distintas, irmãos gémeos, mas de temperamento e visão bem diferentes.

A confusão, no entanto, começa no início e só acaba no fim: na infância, Cristo é que é o bom da fita, que salva o irmão de uma situação delicada - por exemplo, no episódio em que Jesus, aos 12 anos, fica em Jerusalém, mas tinha sido apanhado a escrever o nome na parede do Templo e estava para ser castigado. Depois, Cristo quer convencer Jesus a fundar uma organização, acaba a traí-lo e, finalmente, hesita de novo em continuar aquilo que começara...

Entre os diferentes momentos, falta espessura a colar o enredo e as personagens. As ligações são frágeis e não se entende porque é que, nuns casos, as histórias bíblicas são copiadas quase “ipsis verbis” e, noutros, são ligeiramente alteradas - e tornadas deveras desinteressantes.

O enredo do livro pretende ser uma crítica à instituição religiosa, à Igreja. “Ateu confesso e crítico das religiões”, como por vezes é apresentado o autor, Pullman assume o chamado “novo ateísmo”, que de novo tem muito pouco e se limita, na maior parte dos casos, a recordar os males que as instituições religiosas fizeram ao longo dos séculos. E que é incapaz, por exemplo, de colocar a questão do sentido.

Mas, mesmo nesse enredo, Pullman fica muito longe de algo que traga novidade. Basta comparar com uma outra obra relativamente recente: “Vaticano 2035”, de Pietro de Paoli. Publicado há cinco anos, este livro colocava-nos perante um olhar ao mesmo tempo informado e crítico, que disseca vários argumentos, tece teias de relações e lutas, apresenta perspectivas e prospectivas.

Neste “Jesus, o Bom, e Cristo, o Patife”, Pullman fica-se por um enunciado genérico de uma crítica à organização da Igreja, que já vimos milhares de vezes repetida, em relação a essa e a outras instituições. E que se vai repisando, ao longo do livro, por três ou quatro vezes, sem nunca passar da mediania literária nem da superficialidade filosófica.

A personagem de Cristo, centro da história, não convence, tal a sua fragilidade: ora quer convencer o irmão, ora o acrescenta, ora o admira, ora o rejeita. O seu irmão faz as coisas por paixão, ele por calculismo, diz a dada altura. Ele é “a parte de Jesus que falta” e que irá fazer o que Jesus vivo não conseguiu fazer... Mas depois, no final, após ter-se assumido como duplo do Jesus que morrera (traído por Cristo), acaba, afinal, como modesto fabricante de redes numa localidade onde ninguém conhecia as suas origens, rejeitando a evolução institucional que, afinal, ele próprio desejara. A personagem do anjo que aparece sem nunca ser identificado, tentando influenciar Cristo, ajuda a dar um assomo de mistério e literatura. Mas é pouco, muito pouco.

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