Jeff Wall: “Os grandes fotógrafos são poetas”

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É um dos nomes centrais da arte das últimas décadas. O canadiano Jeff Wall revela, no Centro Galego de Arte Contemporânea, em Santiago de Compostela, muitas das obras que inspiraram o seu trabalho. Uma exposição relevante, através da qual é possível perceber as razões pelas quais este é um dos herdeiros da aventura surrealista

"The Crooked Path", que se poderia traduzir como "O Caminho Tortuoso", é o título da exposição que coloca em diálogo a obra do canadiano Jeff Wall (1946, Vancouver) com muitas das suas referências quer passadas, quer actuais. A mostra, patente, até 26 de Fevereiro de 2012, no Centro Galego de Arte Contemporânea, em Santiago de Compostela, partiu de uma ideia de um dos seus comissários, Joël Benzakin, que, em colaboração com o artista, construiu um percurso através de pinturas, esculturas, livros, fotografias e fragmentos de filmes, os quais favorecem uma aproximação singular ao trabalho de uma das figuras centrais da arte das últimas décadas. Um autor que, segundo afirmou um dia o crítico Thierry de Duve, encarnou "o pintor da vida moderna" enquanto fotógrafo.

Esta exposição é percorrida por referências à literatura, sobretudo aquela que emerge na transição do século XIX para o século XX. Qual a razão desta preferência?

Não tenho a certeza que a prefira; talvez seja devida às circunstâncias desta exposição. Um bom exemplo é a presença de "Nadja", de André Breton. Não sou grande seguidor de Breton; respeito-o, mas não é um autor do qual me sinta muito próximo. Contudo, "Nadja" foi muito importante para mim, devido à forma como combina uma narrativa poética, subjectiva, com a fotografia. Quando descobri o livro pela primeira vez, nos anos de 1960, ele teve um forte impacto: sente-se que as fotografias de ruas e de edifícios banais de Paris realizadas por [Jacques-André] Boiffard, estavam intimamente ligadas a essa narrativa literária, poética, fantástica.

"Amour Fou" é um outro livro de Breton no qual surge esse diálogo entre texto e imagens...

O grupo surrealista manteve uma relação interessante com a fotografia: muito conhecedora, sofisticada e livre. Geralmente tenho muito apreço pela forma como esse grupo de escritores se relacionou com a fotografia. Não são, porém, os únicos pelos quais me interesso, embora goste muito das suas obras. Gosto muito de literatura, leio muito e, em criança, gostava de ler romances, poesia... Ainda gosto de me envolver, enquanto leitor, com a literatura, porque é, em si, uma experiência estética... e pode fazer-se no sofá, não se tem de sair de casa; é muito conveniente. Adoro sentar-me ao fim da tarde, relaxar-me e ler um romance. Sempre o fiz e sei que influenciou a minha sensibilidade, a minha personalidade.

Numa das vitrinas da exposição apresenta "Documents", uma "revista ilustrada" editada entre 1929 e 1931, que marca uma ruptura com o surrealismo e na qual também é evidente a relação entre a palavra e a imagem fotográfica...

Esse momento, no século XX, fui uma das mais criativas, originais e sugestivas instâncias de gente sofisticada a olhar para a fotografia de forma inovadora. Podia facilmente ter colocado uma centena de outros livros na exposição, todos eles relacionados com uma experiência significativa para mim, mas não teriam directamente a ver com fotografia. Tive de escolher cuidadosamente algumas coisas às quais poderia dar um estatuto exemplar desse vínculo entre literatura e fotografia. As três novelas que se vê numa outra vitrina [livros de Ralph Ellison, Franz Kafka e Yukio Mishima], todas relacionadas com as minhas fotografias ["pictures", palavra que pode ser também traduzida por quadros], produzem outro tipo de relações: o meu envolvimento com essas novelas foi puramente acidental; nunca tive um plano para fazer uma fotografia. Estava simplesmente a ler, como faço habitualmente...

E como surge a necessidade de realizar uma fotografia?

É apenas uma intuição. São acidentes que surgem durante a leitura. As minhas fotografias podem ter origem em qualquer lugar, mas surgem quase sempre de forma acidental: pode ser alguma coisa que vi na rua, pode ser algo que uma pessoa me contou, pode ser uma canção que ouvi e pode ser também a ler um livro. Quando me veio a ideia de que poderia fazer uma imagem a partir de um texto de Kafka, pensei: "isto é pouco habitual e é, de certa forma, antiquado, mas foi acidental e, se é acidental, é como os outros acidentes: não o devo contrariar."Então deixei-a acontecer.

Essa noção de acidente recorda também uma outra, a de "acaso objectivo" ["hasard objectif"], central na construção de "Nadja", de Breton...

Absolutamente. Gosto da forma como Breton se coloca num determinado estado em que permite que algo lhe aconteça. Não estava à procura, estava à espera, antecipou um acidente, mas não sabia aquilo que era e permitiu que a aventura ocorresse: é uma boa analogia para a minha própria forma de fazer as coisas.

O grupo associado à revista "Documents", entre os quais Georges Bataille e Carl Einstein, dava muita importância às "doutrinas, arqueologia, belas-artes e etnografia." O seu trabalho parece mais próximo de uma arqueologia do que de uma aproximação etnográfica às imagens. Na exposição está patente uma fotografia de Alfred Stieglitz, "Excavating, New York", 1911, que pode ser lida como uma bom exemplo daquilo que propõe em "The Crooked Path"...

É uma boa interpretação, embora não me sinta próximo de nenhuma delas [nem de uma arqueologia, nem de uma etnografia]. As pessoas ligadas à "Documents" estavam sintonizadas com formas críticas de pensar acerca da cultura que estavam a inventar. [Na exposição], a revista "Documents" está aberta numa página que mostra uma povoação na British Columbia, o que é formidável: o facto de eles terem sido os primeiros a interessar-se pela arte e pela cultura daquela área. Existe, portanto, uma espécie de "Vancouver conexion" através do Museu do Homem e da "Documents": a forma alienada desse grupo olhar para as coisas era semelhante à nossa. Algures na entrevista publicada no catálogo digo, citando Walker Evans, que cada romance é, em certo sentido, um livro de fotografias - o seu livro, "American Photographs" [1938] é, de certa forma, o seu grande romance americano. Penso que ele sentiu isso intensamente. Os fotógrafos são poetas: os grandes são todos poetas. A maioria interessa-se por poesia. E sentem que existe alguma afinidade entre aquilo que fazem e aquilo que um poeta faz. Sou grande devoto de Baudelaire, por causa da forma como ele pegou na reportagem e a transformou em poesia. Os poetas franceses desse período até aos surrealistas, passando por Proust, fizeram algo de assinalável, único, e que alguém que esteja seriamente interessado em arte moderna tem de apreciar.

Podemos então ler as suas fotografias como poemas...

Análogas à prosa poética, de uma forma simples. Sinto que Baudelaire, que escreveu os maiores poemas em prosa, teve a intenção de escrever uma reportagem e acabou com um poema. E penso que esse processo diz tudo acerca de como a fotografia se pode tornar artística. Começamos por nos decidir em informar acerca de alguma coisa, mas não ficamos por aí.

Walter Benjamin, que escreveu quer acerca da fotografia, quer sobre Baudelaire, aborda a questão da perda da aura...

Para a minha geração, Benjamin foi uma figura central na formação da forma de pensar. Isso foi há trinta ou quarenta anos, quando se tornou uma figura tão excitante, em parte pela forma como escreveu, o seu estilo, e em parte por aquilo que se interessou. Ele estava sintonizado com muitas das coisas que temos falado... a sua amizade com Bataille. Movia-se nos mesmos círculos, embora fosse alemão. A ideia de que a tecnologia moderna iria dissolver a aura das obras de arte era fascinante, mas não era verdade. Não há perda de aura, só porque um trabalho é feito num novo media. Não interessa se ele estava certo ou errado.

A perda de aura chegou sobretudo através da reprodução de esculturas e pinturas através da imagem fotográfica... No seu trabalho, a aura parece emanar das próprias caixas de luz que revelam a fotografia...

E é isso que comecei a não gostar nas minhas caixas de luz. Uma das razões que me levou a fazer uma pausa nesse trabalho foi o facto de elas terem demasiada dessa luminosidade aurática. Não são suficientemente resistentes.

Tem um arquivo onde vai buscar as suas ideias para realizar uma fotografia ou tudo se processa de modo distinto?

Não tenho um arquivo, não tomo notas, não tenho nada. Simplesmente percorro os dias à espera que as coisas aconteçam. Se acontecem, presto-lhes atenção. E começo um processo. Muitas vezes, não sei o que vou fazer a seguir. E espero. Felizmente, acaba sempre por acontecer alguma coisa. Nunca tive um período na minha vida, desde que comecei a fazer fotografias, em que não pudesse fazer algo. Portanto, sou algo optimista acerca da minha falta de método. Não tenho método, arquivo, plano, projecto, horário...nada. Apenas faço e se, em algum momento, começo a fazer alguma coisa, então posso tornar-me muito prático, disciplinado e organizado e posso fazer o meu trabalho, demorando o tempo que for necessário.

É um processo complexo, o de realizar uma fotografia?

Não é assim tão complicado...

Por exemplo, "In Front of a Nightclub", de 2006...

Vi um homem a vender flores: era alguém que tinha conhecido há muitos anos, mas aconteceram-lhe muitas coisas e agora vendia flores, na rua, à porta de diferentes discotecas. Isso impressionou-me e rapidamente percebi que este era um belo assunto para uma fotografia: o vendedor de flores é uma imagem muito baudelairiana. Originalmente pensei que faria apenas uma fotografia do vendedor de flores. Depois comecei a questionar onde é que ele ia, como é que ele se comportava. Tinha de descobrir: então passei algum tempo nas ruas, tal como faria um repórter; não o segui, mas segui outros e observei os seus comportamentos. Observo muito. Compreendi então que tinha de fazer um outro tipo de fotografia. Olhei para as discotecas onde eles vendiam as flores e pensei naquela: adoro a fachada, porque se parece com templo grego e por aí fora - originalmente tinha sido um restaurante grego... gosto do espaço, do pórtico...

É uma discoteca que existe...

Sim. Pensei que gostaria de usar esse espaço. Foi um acidente: primeiro vi o vendedor de flores, depois vi o lugar: pensei, tem de ser ali, vi-o lá. Peguei na minha carrinha, cobri as janelas e estacionei-a num sítio de onde podia ver a discoteca. Usei uma teleobjectiva e fotografei muito durante três ou quatro noites, observando o que ali se passava. Através desse procedimento, cheguei à conclusão daquilo que iria fazer. Não construí nada: apenas olhei. E quando cheguei ao momento de fazer a fotografia, apenas usei a informação que recolhi, com pessoas a comportarem-se da mesma forma. Não lhes disse o que deviam fazer: apenas as ia fotografando, porque tinha um espaço onde podia trabalhar.

Pelas suas fotografias passa uma ideia de proximidade à classe trabalhadora, tal como no cinema de Straub Huillet...

Conheço os seus filmes desde os anos de 1970 e gosto muito deles. Gosto da combinação entre o artifício extremo e a actualidade; essa espécie de combinação entre ópera e "factografia", pode ser fascinante: é uma das razões pela qual apresento o filme de Fassbinder ["As Lágrimas Amargas de Petra von Kant", de 1972] na exposição. Há, no cinema, uma linha neo-realista muito forte, que vem de Jean Vigo, passa pelos italianos e chega aos [irmãos] Dardenne, mas ela não é mais poderosa do que aquela visível nos filmes totalmente artificiais de Fassbinder. Gosto de me situar entre elas ou mesmo de combinar ambas numa mesma fotografia. Aprendi isto com Godard e outros... encontra-se isto noutras artes, em Shakespeare, no teatro: toda a arte interessante é simultaneamente imaginária e "factográfica". Em Espanha, não me canso de o dizer, o grande exemplo é Velásquez: é totalmente "factográfico" e é totalmente imaginário. É magnífico: não se consegue encontrar melhor modelo.

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