Jay Leno, o comediante

O antigo anfitrião do The Tonight Show saiu do ecrã mas não calçou as pantufas. Voltou às suas origens, a stand-up comedy. Faz cerca de 200 espectáculos por ano, percorrendo o país de ponta a ponta.

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Está muito escuro e a começar a chover na terra dos Amish. Jay Leno, o antigo anfitrião de Tonight Show, o homem que fez centenas de milhões de dólares enquanto líder dos programas nocturnos de televisão, não está a ser conduzido numa limousine comprida por uma multidão de assistentes. Está a ficar molhado.

“Jay, podemos tirar uma fotografia com a minha mãe?”, grita uma mulher. “Não posso vê-lo todas as noites na televisão”, queixa-se um homem, enquanto Leno assina um monte de fotos brilhantes. “Devia voltar.”

Nesta altura, a chuva passa de pingos a uma tempestade com trovões. Leno está encharcado, camisa de ganga e a farta cabeleira grisalha incluídas. Ainda assim, faz o seu papel. Cerca de 75 pessoas juntaram-se nas traseiras do American Music Theatre, onde ele acabara de esgotar a sala. Querem conhecer o seu herói.

Leno tem todas as razões para evitar estas recepções. Fez três shows nas três últimas noites em três estados diferentes, enchendo o auditório de 1600 lugares no Sul da Pensilvânia. Mas não há razão para se queixar esta noite. Para ele, é uma semana absolutamente normal. Faz 200 espectáculos por ano, e faz porque quer.

“Eu era comediante antes de ter o The ?Tonight Show, era comediante durante o The Tonight Show e agora sou comediante outra vez”, diz. O comediante. É isso que é Leno, de 64 anos, que hoje irá receber o Kennedy Center’s Mark Twain Prize for American Humor, juntando-se à lista dos vencedores, que inclui Richard Pryor, Lily Tomlin, George Carlin, Bill Cosby e Carol Burnett.

É um tributo atempado para Leno, que em Fevereiro se retirou, ao fim de 22 épocas como apresentador do The Tonight Show, dando lugar a Jimmy Fallon. O prémio é dado a quem “teve um impacto na sociedade americana de forma semelhante ao ilustre romancista do século XIX e ensaísta conhecido como Mark Twain”.

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Numa garagem nas imediações do aeroporto Bob Hope, em Burbank, na Califórnia, Leno tem a sua colecção: 130 automóveis e 92 motorizadas MCCLAIN/THE WASHINGTON POST

Ao longo da sua carreira, não há dúvida de que chegou a uma vasta audiência, particularmente a um mercado mainstream conhecido como Middle America. Esta capacidade tornou-o no rei comercial da noite. E também num saco de boxe. David Letterman, ofendido por ter sido ultrapassado a favor de Leno quando Johnny Carson se reformou, em 1992, lança-lhe golpes a partir do seu poleiro na CBS. Jimmy Kimme acusou-o de ser um vendido “que há 20 anos não faz boa stand-up”. Isso aconteceu em 2010, quando Leno, que tinha saído do The Tonight Show, regressou ao programa, a seguir ao celebrado falhanço do seu sucessor, Conan O’Brien. Nesse drama, Leno, o lacaio da empresa, foi chamado cruel.

Jerry Seinfeld, um amigo de longa data, ainda se irrita com os ataques. “Não há história nenhuma”, diz. “As audiências do Conan no The Tonight Show não são segredo. É como o Hurricane Sandy. Podemos ter o registo exacto do que aconteceu aqui.”

Para Bill Maher, o debacle de O’Brien é uma prova de que Leno é tudo menos um predador do showbiz. Na verdade, se calhar precisaria até de um treinador. “A razão por que Jay Leno perdeu o emprego duas vezes quando era n.º1 foi por não ter ninguém a sussurrar atrás da orelha daqueles idiotas da NBC”, afirma Maher. “Ao passo que Conan tinha alguém a dizer: ‘Ei, vocês têm de se livrar daquele velho’.”

Jay Leno não age como uma estrela. Viaja sozinho, carrega a sua própria mala com o seu fato. Na sua farda típica — camisa de ganga e jeans —, vai a pé até ao restaurante mais próximo em Lancaster, pede umas costeletas e enche um copo de plástico com refrigerante de uma máquina.

É acessível e caloroso para toda a gente, em parte porque é essa a sua natureza. Os promotores dos seus espectáculos não recebem exigências como garrafas de San Pellegrino gelado ou seguranças para estar de guarda a um quarto todo verde. Uma vez, conta Leno, foi tão pouco exigente num contrato que quando apareceu nem tinha microfone. “Você disse que não precisava de nada”, disseram-lhe, e Leno, conta, fez o espectáculo sem amplificação.

“O show business não é assim tão difícil”, comenta nos bastidores em Lancaster. “As pessoas tornam-no difícil. Eu não quero ser uma dor de cabeça.”

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Leno, que faz cerca de 200 espectáculos de stand-up anuais, esgotou o American Music Theatre e os espectadores vão cumprimentá-lo às traseiras MCCLAIN/THE WASHINGTON POST

Tem a mesma abordagem em relação às entrevistas. Não foge às perguntas, nem mesmo às pessoais, nem mesmo àquelas sobre a sua conta bancária. É conhecido o facto de ter guardado todos os seus ordenados do Tonight Show — fazia mais de 25 milhões de dólares por ano — usando o dinheiro do seu stand-up para pagar as despesas correntes. Em Lancaster, esta noite, sairá com perto de 125 mil dólares. Noutras noites, ganha 200 mil. “O que é estúpido, não é?”, diz com um sorriso. “É hilariante.”

Seinfeld, que também faz digressões sem parar, diz que ele e Leno consideram o stand-up um estilo de vida. “Nunca esquecerei uma conversa que o Leno teve sobre um amigo nosso que estava a planear fazer umas férias a andar de bicicleta pela Irlanda”, conta. “E nós estávamos tipo: ‘Porque é que preferes fazer isso a estar no Punchline em Atlanta?’” E porque não desacelerar um bocadinho?

Isso não está no ADN de Leno, afirma Mavis Leno, sua mulher há 34 anos. “Em primeiro lugar, ele adora fazer aquilo mais do que qualquer outra coisa”, continua. “E o pai dele também [é assim], nos últimos dois anos de vida, andou com problemas no tornozelo devido a uma queda porque aos 79 anos decidiu fazer reparações no telhado. É de família. Todo o lado masculino da família é assim. Acho que fosse o que fosse que ele fizesse, ainda estaria a fazê-lo, e a fazê-lo até morrer.”

Se Jay Leno tem uma voz — não fuma nem bebe café —, ela está dentro de um conjunto de armazéns nas imediações de Bob Hope Airport em Burbank, na Califórnia. É aqui que fica a sua garagem, onde Leno e um grupo de mecânicos restauram a sua impressionante colecção.

“Isto”, brinca, atravessando o espaço, “é a minha casa de praia em Malibu”. É uma garagem de trabalho, mas imaculada e limpa como um museu. Numa das manhãs, ao entrar, pede a um dos seus homens que verifique o óleo de um Chrysler 300G de 1961 que acabou de comprar. Tem motores a vapor e carros de corrida, 130 automóveis e 92 motorizadas.

Ouvindo as suas intermináveis e entusiásticas histórias sobre a colecção, é natural que se pergunte: gosta mais de falar sobre carros — fez isso numa série na Internet, o Jay Leno’s Garage, e está a negociar um programa em horário nobre sobre carros com a CNBC — do que fazer o Tonight Show? Não, diz. Os programas são diferentes.

“Gosto disto porque é uma paixão”, afirma. “Quando falamos com o Batman no Tonight Show, não estamos realmente a falar com o Batman. Quando falamos com um engenheiro, estamos a falar com um engenheiro a sério. O mundo do espectáculo é divertido de observar. Mas não nos preenche totalmente.”

Se lermos os ataques a Leno nos últimos anos, podemos ficar chocados com uma verdade indesmentível. Jay Leno ainda tem graça. Muita graça. Vê-lo actuar é como ouvir Yo-Yo Ma tocar Bach ou ver Clayton Kershaw a lançar uma bola em curva no campo de basebol. Fora do palco, dá sinais da sua idade. Tem barriga e as pálpebras daqueles olhos azuis penetrantes começam a tornar-se pesadas à medida que o dia avança. Coxeia um pouco, devido a um dedo do pé partido que nunca tratou. Mas essas fragilidades desaparecem quando são horas do espectáculo.

Como um super-herói, precisa apenas de oito minutos no seu camarim para se refrescar. Reaparece de fato escuro e uma elegante gravata roxa. Leva um maço de notas de 20 dólares para o elevador que o transporta ao palco, gorjetas para os funcionários.

Em Lancaster, a sua actuação é de 90 minutos. Desliza graciosamente, com o microfone na mão, com gestos perfeitos e saídas no tempo certo. Até o seu material mais datado — a parte que se refere ao comentário homofóbico que o basquetebolista do NBA Tim Hardaway fez em 2007 — desliza como uma torrada cheia de manteiga.

Ser o mestre da comédia da Middle America significa manter uma linguagem limpa sem ter medo de entrar no humor de casa de banho. “Feliz aniversário a Hugh Hefner”, arranca em Lencaster. “Acabou de fazer 88 anos. Talvez se lembrem que há um ano e meio ele e a sua noiva Crystal Harris, de 26 anos, casaram-se. Ou, como ela diz, trocaram arrastadeiras por ouro.” Algumas tiradas depois, estava a falar de pornografia na Internet.

Exclusivo PÚBLICO/ The Washington Post      

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