Jardim Zen (Chabeuil-St Germain-en-Laye-Genebra-Annecy-Mâcon-Zurique)

O Ípsilon publica hoje a úlltima das crónicas de digressão de Paulo Furtado. Uma viagem para acompanhar também em http://paulofurtado thelegendary tigerman.tumblr.com/

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Estou a caminho de Zurique para aquele que será o último concerto da tour europeia deste ano. É mais uma viagem longa, cerca de cinco horas. Ao meu lado, o Paulo Segadães estuda escalas num pequeno teclado. É relaxante, o movimento dos dedos com o ruído da estrada. 

Há quase uma semana atrás estava bem longe daqui, junto a Chabeuil, onde fiquei hospedado numa casa rústica muito antiga, com um ar assombrado.

A manhã estava fria e parecia que ia chover, mas restavam-me ainda umas horas antes de partir e decidi ir dar um passeio pelo campo. Já andava há algum tempo quando, num cruzamento, me deparei com uma placa que indicava um jardim zen, à esquerda. Não consegui resistir. Fui andando por uma pequena estrada rural, entre prados verdejantes, cercados por bosques cerrados. Pelo caminho cruzei-me com um senhor idoso e cumprimentámo-nos. Tinha um olhar triste e cansado e, não sei porquê, imaginei que aqueles olhos já teriam visto pelo menos uma guerra mundial. 

Este encontro levou-me a deambular pelo passado, até aos tempos da invasão nazi. A belíssima paisagem que agora percorria, tranquilamente e sem qualquer preocupação, quantas vezes teria sido percorrida a medo, nessa época? Que perigos e emboscadas poderão ter escondido estes bosques? 

Tentei imaginar memórias e recordações de amor e de guerra, perdidas entre as árvores, o cheiro a pólvora, o horizonte rasgado por fumo negro. Mas estava tudo demasiado longe e era difícil não me sentir em paz neste passeio.

Finalmente encontrei o que procurava, do lado direito da estrada. “Jardin Zen”, escrito numa placa, não há que enganar. No meio do nada, numa típica paisagem rural francesa, entrei por uma pequena portada de madeira num local surreal, uma imitação bastante tosca, mas bem intencionada, de um jardim japonês. Sentei-me num pequeno banquinho e observei o que me rodeava. Aparentemente este jardim teria todos os elementos necessários para ser um belo local de meditação mas parecia que tudo estava vagamente fora do sítio, as distâncias e proporções não estavam correctas, havia definitivamente uma falta de savoir-faire. Não fiquei muito tempo, estava frio e era tempo de voltar. Percorri o caminho de volta ao hotel, em passo rápido.

Quando estou em tournée tento sempre tirar uns pequenos momentos para mim, se possível sozinho e rodeado de natureza. Alguns dias depois estaria a passear junto ao belíssimo lago de Annecy, envolto numa paisagem de cortar a respiração, sentindo uma grande tranquilidade. Água e montanhas sempre me acalmaram. 

De tempos a tempos preciso de encontrar um contraponto para a montanha russa emocional que é dar concertos de rock’n’roll todos os dias. Um modo de me reagrupar, como pessoa e como artista, espectáculo após espectáculo, digressão após digressão, disco após disco. Porque fica um grande vazio por preencher, depois do último acorde e das últimas palmas. Não tem de ser algo tão gráfico quanto um passeio na natureza, pode ser apenas ver as nuvens a passar, deitado no último banco da carrinha, ou ler um poema. Às vezes isso chega para conseguir voltar à terra. Há um poema de Sophia de Mello Breyner Andresen, do qual me lembro recorrentemente, que parece descrever muito bem este tipo de vazio, quase próximo ao da morte do amor: “No ponto onde o silêncio e a solidão/ Se cruzam com a noite e com o frio,/ Esperei como quem espera em vão,/ Tão nítido e preciso era o vazio.”

A marcha da carrinha abranda, estamos a chegar a Zurique. Daqui a poucas horas farei o último concerto da digressão, terei mais uma descarga de adrenalina e êxtase, e depois ficarei a sentir-me vazio por uns dias. 

Hoje já consigo viver melhor com esse sentimento, sei que mais cedo ou mais tarde o vazio será preenchido e tenho estratégias para que isso aconteça mais depressa. Começo a aprender a habitar pequenos jardins zen que crio dentro de mim, imperfeitos e toscos, mas que vão cumprindo a sua função.

Em tempos já foi mais doloroso.

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