Itália: promover a cultura em tempo de luto

Enquanto em Amatrice se contabilizam as imensas perdas humanas e materiais, há um ganho de civilização que não pode ser ignorado.

A Itália vive momentos trágicos enquanto conta as vítimas de Amatrice e imagina, em Roma, como há-de apoiar uma comunidade material e psicologicamente destruída e também dar passos para recuperar o enorme património histórico devastado. Neste contexto não é fácil valorizar notícias sobre o que se faz com a cultura na perspectiva do interesse e do futuro da juventude. Mas é justamente daí que surgem relevantes notícias.

Em Novembro do ano passado, o Primeiro-Ministro Matteo Renzi anunciou a criação de uma significativa grelha de investimentos que envolvia medidas de apoio nas acções contra o terrorismo e e uma verba destinada a apoiar a promoção cultural de um país onde quase tudo o que é essencial passa pelo História e pela Cultura.

Estabelecendo uma inusitada proporcionalidade, como o próprio PÚBLICO agora noticia, por cada euro destinado às acções de segurança o mesmo valor deverá ser atribuído aos jovens para a desejada fruição cultural. Os beneficiários desta medida política que suscita uma natural e justa reflexão são os 550 mil jovens que completem 18 anos este ano. Não se conhece estratégia semelhante noutro país, designadamente da União Europeia. Nesta Europa em crise é obra.

A partir de 15 de Setembro próximo, cada um destes jovens vai receber 500 euros que deverá aplicar de forma justa e já prevista em museus, exposições, aquisição de livros, concertos e outros eventos culturais. É uma medida justa e inovadora, mas é forçoso reconhecer que, nos tempos que correm, estes consumos poderão não ser os mais entusiasmantes para este sector específico da juventude. Na verdade, a base da fruição cultural assenta nos consumos que se fazem neste domínio, sobretudo num país que tem cidades como Amatrice com 100 igrejas de várias épocas para visitar.

Este benefício que abrange também estrangeiros com residência autorizada em Itália, é válido até ao final de 2017.

Compete ao Ministério de Bens Culturais efectuar o inventário dos eventos e produtos a que quase 580 mil jovens com 18 anos feitos poderão ter acesso. Saliente-se que este bónus vai muito para além da área dos livros escolares. O valor global da bonificação é da ordem dos 290 milhões de euros.

Agora devem os jovens credenciar-se para obter a bonificação e efectuar os pedidos através dos meios electrónicos previstos. Efectuado o pedido, a verba calculada é activada no dia do aniversário do jovem e fica disponível até ao final de 2017.

Um membro do governo declarou a um jornal de referência em Roma que esta é uma forma de saudar quem chega à idade adulta e de sublinhar a importância da cultura no fortalecimento do tecido social. Na verdade, é difícil dizer mais e melhor sobre uma medida tão concreta e inesperada. Logo os produtores musicais e representantes da indústria do sector protestaram considerando que a música, em tempo de crescente acesso via “streaming”, está ser prejudicada. O “streaming” é de longe preferível ao acesso ilegal aos bens culturais mas há muitas formas de evitar que a música, mesmo em estrutural crise de transformação de produção e de comunicação com os consumidores, não seja preterida e afectada. Com efeito, este bónus do governo italiano não abrange canções em formato digital ou físico, mas isso está longe de representar o que poderia definir-se como uma acção deliberada para prejuízo da música e dos seus criadores.

Naquela que foi a capital de imperadores cultos como Adriano, o da muralha que tem o seu nome e do sempre deslumbrante Panteão e de Trajano, é estimulante ver o governo de Itália a encontrar uma medida concreta para levar os jovens a consumirem mais cultura e, desejavelmente, a tornarem-se cidadãos mais activos e críticos graças a esse consumo.

As medidas de apoio à Cultura e a quem a cria e difunde, em países que dispõem de meios para o fazer (o que não é caso de Portugal), pode e costuma ter uma diferente índole. Uma coisa porém é certa: os mais de 550 mil jovens que quiserem consumir cultura têm aqui um suporte encorajador que não pode nunca ser ignorado ou subestimado. Quando a Cultura recebe, sob a forma de bonificação e estímulo, o mesmo valor que o combate ao terrorismo e à segurança, isso tem um significado civilizacional que não pode ser ignorado ou subalternizado.

Enquanto em Amatrice se contabilizam as imensas perdas humanas e materiais, há um ganho de civilização que não pode ser ignorado. Talvez outras estruturas de decisão política se deixem inspirar por esta medida, em Itália e noutros países, para que os consumos culturais ajudem as jovens gerações a ver e a sentir a cultura como um expressivo factor de requalificação da vida colectiva. A vontade estimula a imaginação e pode fazer pequenos “milagres” como este. Entretanto, as receitas dos museus e outros equipamentos culturais ajudam a recuperar Amatrice.

Escritor, jornalista e presidente da Sociedade Portuguesa de Autores

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