Isto não é uma peça de época

Os King Gizzard & The Lizard Wizard são pessoal com a cabeça cheia de ideias e os braços cheios de talento.

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Os Gun Outfit insistem num pessimismo sensato e inteligente, dirigido ao mundo, ao conhecimento, à sociedade DR

Os australianos King Gizzard & The Lizard Wizard são admiráveis por várias razões. Pelo delirante nome que têm; pelo prazer evidente que demonstram em compor e gravar música (sete álbuns em três anos é obra); pela recuperação para o contexto rock, variante psicadélica, da flauta, cujo som fazem erguer-se sobre o fuzz das guitarras e as jams de teor psicadélico elevado. Agora que conhecemos Paper Mâché Dream Balloon, são admiráveis por uma razão mais.

Depois de em I’m You Mind Fuzz, de 2014, e Quarters!, editado já este ano, se terem mostrado inspiradíssimos criadores de psicadelismo rock’n’roll ligado à electricidade, juntando-se, dessa forma, às boas coisas, Pond e Tame Impala à cabeça, que nos têm chegado da Austrália, o septeto decidiu criar algo radicalmente diferente. “Queria fazer um álbum com uma colecção de curtas canções, sem relação umas com as outras”, explicou o líder Stu Mackenzie no texto de apresentação do disco. Queria mais: trocar o fervilhar das guitarras eléctricas e o ruído rock por guitarras acústicas, clarinetes, cítaras e harmonias vocais bucólicas (a flauta, claro, manter-se-ia presente).

Sense, a primeira canção, é eloquente quanto à mudança. O clarinete seguido pelas notas da guitarra acústica, a vibração estranhamente jazzy, algures entre a Canterbury dos Caravan e o soft-rock californiano, tudo brisa dolente e um vocalista que dirá “it makes no sense at all” – e nós, que sabemos o que eram os King Gizzard & The Lizard Wizard, fazemos coro com ele (aparentemente, não faz sentido nenhum). Dá-se o caso de a banda australiana saber muito bem o que faz e dominar na perfeição as estéticas que abraça. O que parece estranho revela assim uma curiosa peça de época, magistralmente interpretada - “stuck in a daydream”, como ouvimos na canção título, que é ligação directa à música sonhadora, convictamente ingénua e vivíssima de imaginação que os Olivia Tremor Control criavam a partir de um quarto de Athens, Estados Unidos, na década de 1990.

Ouvimos a canção psicose de ritmo absurdamente viciante que é Trapdoor (e só podem haver coisas pouco recomendáveis, ideais para cenário de filme de terror, sob esse alçapão); descobre-se como os Kinks e os Small Faces são sempre boa fonte de inspiração (Time=Fate ou Bone); e até temos direito a um blues-rock que cita directamente o Fried hockey boogie dos Canned Heat (mas com clarinete, outra vez, em vez dos solos de baixo e de guitarra). Deixamo-nos envolver nesta imaculada viagem à música pastoral da contracultura dos anos 1960, a que sonhava com paz e com o reencontro com a terra, e, porque os King Gizzard & The Lizard Wizard não estão nos anos 1960 e não são certamente hippies, surpreendemo-nos mais que um par de vezes ao perceber que, neste disco de aparência tão serena, se canta, por exemplo, em modo gore cómico, sobre a pele fria de um cadáver (“Cold cadaver”, precisamente).

Nunca devemos ler os King Gizzard & The Lizard Wizard superficialmente. São pessoal com a cabeça cheia de ideias e os braços cheios de talento. E gostam de nos confundir as expectativas. Não, isto não é exactamente uma peça de época. Ainda bem.

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