Isto não é a volta a Portugal em bicicleta

Augusto Brázio é um fotógrafo em périplo pelo país. Quer olhar para os lugares que aparecem pouco, mas sem metas de chegada nem contra-relógios. Uma exposição e um livro mostram as voltas que deu em Ponte de Sor.

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As palavras e as imagens fotográficas deviam ter uma relação igual à dos casais que vivem em casas separadas e que se encontram só às vezes, quando têm a certeza que existe alguma coisa para dizer um ao outro. O trecho de José Luís Peixoto que abre o livro Sor, o mais recente trabalho de fotografia de Augusto Brázio, é um desses encontros certeiros, onde as palavras servem de antecâmara perfeita para as imagens, mas como um aviso à navegação.

“Os nossos lugares não podem ser comparados porque são demasiado íntimos. Onde existem só nós os podemos ver. Há muitas camadas de invisível sobre as formas que todos distinguem.” Lidas antes de se virarem as páginas de Sor, estas certezas do escritor parecem ter sido injectadas no fotógrafo para lhe dar uma predisposição errante, um estado de aceitação do impossível ou, pelo menos, a consciência mínima das armadilhas presentes nas tentativas de captar fotograficamente “a realidade” de um sítio onde acaba de aterrar, de um sítio de onde não é “natural”. Durante os meses em que entrou e saiu de Ponte de Sor, concelho do Alto Alentejo que abarca a freguesia de Galveias, de onde Peixoto é natural, Brázio foi assumindo as dificuldades em captar um lugar que lhe é familiar (também é alentejano), mas que não é o seu. Avisados da dificuldade de se chegar ao que é profundo nos lugares que não são os nossos, Peixoto deixa ainda outra certeza: “Não vale a pena explicarmos o nosso lugar, ninguém vai entendê-lo. As palavras não aguentam o peso dessa verdade, terra fértil que vem do passado mais remoto, nascente que se estende até ao futuro sem morte”.

As palavras que nos podem guiar pelas imagens (ou estimular-nos para elas), afinal não servem, segundo o escritor, para descrever a força íntima que resulta da ligação de um pedaço de terra a alguém.

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Augusto Brázio gosta de sentir a limitação geográfica de um território enquanto fotografa. Em Ponte de Sor deixou-se guiar pela ribeira que deu nome ao trabalho, Sor, para encontrar paisagens e pessoas que o ajudassem a criar “um novo lugar” Augusto Brázio

E aqui entra o fotógrafo. Mas muito longe da figura de salvador.

Ao longo do último ano, o caminho que Augusto Brázio escolheu para chegar a Ponte de Sor foi sempre o mesmo, passando primeiro pela barragem de Montargil e pelo imenso lago artificial por ela criado. Daí, seguia a montante o curso da Ribeira de Sor, derivando depois ao sabor do instinto, dos pequenos acontecimentos (não das notícias) e dos sinais que o espaço lhe foi dando. Aquela massa de água “construída”, que se impôs e se acrescentou à paisagem, acabou por influenciar a procura de imagens que não escondessem a artificialidade e que transmitissem uma dose generosa de mistério. Esse lado postiço (sublinhado pela luz artificial que atravessa as imagens) é uma constante na sequência de fotografias que acabou nas páginas de Sor. E é uma maneira de Brázio contrariar a ideia de que está a “dar a conhecer o país”, como se tratasse de uma missão topográfica, naquela que é a sua segunda abordagem a cidades do interior ou fora dos grandes centros urbanos, depois de um ensaio semelhante em Torres Novas, do qual também resultou uma publicação, desta vez construída a meias com as fotografias de Nelson d’Aires.

A ideia de Augusto Brázio (que para este trabalho recebeu o apoio da Fundação das Casas de Fronteira e Alorna) é prosseguir para outras paragens que estão um pouco fora do radar da reflexão pela imagem. E com elas, gradualmente, tentar chegar a “alguma ideia de portugalidade”, não tanto pela qualidade própria do que é português, nem da sua história, amor ou afeição pelo país, mas mais pelos modos de ser e de estar das pessoas e da relação destas com um espaço definido. (Peixoto: “Todos temos um lugar onde a vida se acerta.”)

Como um realizador

Quem olhar para as imagens de Sor não encontrará muitos sinais “distintivos”. Mas estão lá “as coisas mínimas” a que o fotógrafo se agarrou e que permitem vislumbrar as alterações na paisagem, o trabalho, o lazer, a velhice, a juventude, a intimidade, o novo e o velho. Nessa “frequência” imagética em que Augusto Brázio se colocou (e que tem como orientação mínima a delimitação do espaço geográfico de um concelho alentejano) o mistério ganha mais protagonismo do que a realidade. O objectivo, diz ao ípsilon, é “criar um ambiente a partir de um lugar” e não “tentar retratar esse ambiente”. “Há algo que atravessa estas imagens que é um mistério. Não queria que elas ficassem agarradas ao seu lado local, ainda que o sejam, mas o facto de terem essa carga ambígua permitem-lhe descolar do local para o geral. E isso talvez faça com que se aproximem do que é comum, de alguma ideia de portugalidade.”

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Preparado para receber os estímulos particulares de cada lugar e recusando qualquer tipo de fórmula que já tenha adoptado noutra série de imagens, nomeadamente na de Torres Vedras, no concelho de Ponte de Sor Brázio sentiu-se “como um realizador”. Munido de “luz, guião e cenários” foi à procura de intérpretes. “Alguém me dizia que este trabalho tem um lado Twin Peaks [a série de TV de mistério irresolúvel]. A diferença aqui é que não contrato os actores para irem para um sítio, eles já lá estão. Quando vou a um almoço com 300 reformados e escolho dois ou três pessoas para fotografar, na verdade o que estou a fazer lá é um casting.” Em muitas imagens de Sor, sobretudo nas paisagens, há uma estética ligada à fotografia de cinema, com a luz muito trabalhada e forte. Ou seja, é nas estratégias da ficção que o fotógrafo se apoia para “transmitir os vestígios de determinado lugar”.  

Por outro lado, a delimitação geográfica é uma imposição que lhe agrada, porque lhe dá a possibilidade de olhar demorada e repetidamente para o mesmo espaço. “Gosto de entrar no ritmo de cada lugar e no das pessoas que lá estão. Quando vou para estes trabalhos sinto que o fascínio maior é estar com as pessoas, conhecê-las, ser convidado por elas. Para isto acontecer, preciso de estar com total disponibilidade mental dentro de um território bem definido.”

Augusto Brázio, que paralelamente ao livro apresenta uma exposição no Centro de Artes e Cultura de Ponte de Sor (até 7 de Janeiro de 2017), não é um fotógrafo de grandes distâncias, mas de grandes estadias e de rememoração dos lugares. Gosta de voltar a eles até sentir “que as coisas se alinham num ponto” em que precisa de as registar. Por vezes acontece fotografar por via de um impulso mais imediato, mas raramente é assim. “Fotografo pouco e no dia-a-dia não ando de câmara. Mas o meu cérebro não pára de pensar visualmente, é quase obsessivo. Quando vou para um lugar fico tomado por ele.” Para construir Sor fotografou de dia e de noite, mas interessou-lhe sobretudo o crepúsculo, altura em que “as pessoas mudam de uns sítios para outros” e em que “existe mudança e instabilidade”.

Qualquer que seja o momento do dia, Augusto Brázio não sente necessidade de viajar até muito longe para encontrar aquilo que mais gosta de mostrar: “Não preciso de atravessar o mundo para fazer fotografia, para encontrar boas histórias. As que estão aqui, perto de mim, chegam-me. O ponto central são as pessoas. Sempre elas.” Para além de as trazer fotografadas (e de tentar compreender o seu “centro”, o seu lugar), o fotógrafo partilha a experiência dessa aproximação. É por isso que Sor é o tipo de trabalho que não quer dizer apenas alguma coisa a quem vê. Mas o tipo de trabalho que acrescenta vida a quem o faz. “Na verdade, o que estou a fazer quando fotografo é viver.”

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