A banda do século XXI passa por Paredes de Coura

Os LCD Soundsystem despediram-se em 2011. Regressaram passados curtos cinco anos. Entre o sentimento de traição e o prazer do reencontro, impôs-se uma realidade: não se diz não à banda do século XXI. Dia 18, estarão no Vodafone Paredes de Coura.

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foto: Jeff Kravitz/FilmMagic for Bonnaroo Arts and Music Festival

O poster colado nas paredes de Nova Iorque e partilhado nas redes sociais, em preto-e-branco cru de fanzine punk, mostrava a banda a imitar, de forma comicamente amadora, uma qualquer cena de um filme de Romero infestado de zombies. “LCD Soundsystem back from the dead”. Era sob esse título que, em Março, se anunciavam os primeiros concertos da banda desde que, surpreendentemente, James Murphy anunciara que, afinal, a despedida para sempre de 2011, marcada por um concerto épico no Madison Square Garden, esgotado em 18 minutos, não era afinal, para sempre. A despedida fora, aliás, bastante curta.

“Cinco anos é o tempo que demoram algumas bandas a gravar um álbum. Quando o terminam e começam a dar concertos não lhe chamam ‘regresso’, pois não?”, questiona Rui Maia, músico, produtor e DJ que conhecemos nos X-Wife, que assina como Mirror People ou em nome próprio, fazendo eco dos gritos de indignação que percorreram a internet quando foi anunciado o regresso. Compreende-se.

Os LCD Soundsystem foram a banda que melhor representou, em som e discurso, o estado da música desde que se anunciou o século XXI. Demoliram, por fim e sem hipótese de retrocesso, as fronteiras que delimitavam o rock e as electrónicas, a música feita vanguarda e o docinho cantarolável, os tempos de ontem e o pulsar contemporâneo. E fizeram-no enquanto Murphy, já trintão quando se transformou de ex-baterista de bandas punk, ex-roadie, ex-exclusivamente produtor e editor em estrela improvável, reflectia e questionava o mundo musical e as pessoas que o habitavam. Fazia-o com um discurso dado ao olhar sarcástico e ao humor auto depreciativo, misto de Woody Allen indie e rabugento empregado de balcão do “Alta-Fidelidade”. Primeiro tocaram todos os corações melómanos dos gloriosos “maluquinhos da música”. Depois, quando o apelo pop das suas canções se tornou inescapável, tornaram-se incontornáveis – podia-se ignorar o nome da banda, mas todos sabiam como dançar “All my friends”.

Em 2011, os “obituários” reflectiam o estatuto que a banda atingira. A Pitchfork publicou uma colecção de ensaios – um por cada canção editada pela banda. Na Onion, chorava-se o fim de um génio, ou melhor, do santo genial James Murphy. “Fizeste como Godard, criticando a arte ao fazer melhor arte. (…) Não nos deste outra hipótese senão amar os LCD, porque construíste a banda de uma forma que a tornou impermeável à crítica”. Até que James Murphy borrou a pintura.

Não se falta impunemente à palavra dada. Não no caso de uma banda que sempre se tinha regido pelas regras sagradas, mas raramente cumpridas, da ética pop. Despediram-se no topo, ao fim de três álbuns sem mácula [“LCD Soundsystem”, 2004; Sound of Silver, 2007; This Is Happening, 2010], cada um uma obra-prima do seu tempo. Despediram-se como gostamos que as bandas se despeçam, quando ainda não há sinais de decadência criativa ou aburguesamento. Não podiam voltar. Muito menos meros cinco anos depois. Muito menos depois do acontecimento que foi a despedida, concerto seguido de documentário, Shut Up And Play The Hits. Muito menos quando, tão perto no tempo quanto Abril de 2014, lançaram The Last Goodbye, registo do concerto de despedida no Madison Square Garden, em luxuosa edição de cinco vinis, pondo-se assim a jeito, perante as suspeitas de aproveitamento comercial do pobre fã, para que se fizessem ouvir suspiros desalentados, habituais no comentário político de rua, mas aqui aplicados a circo rock’n’roll: “isto eles são todos iguais”. Mas serão?

Electrónica e rock'n'roll

O próximo Vodafone Paredes de Coura será, como tem sido hábito nos últimos anos, uma celebração de algum do rock (e seus afluentes e familiares) mais vibrante da actualidade. O minimalismo electro-punk dos britânicos Sleaford Mods, o garage-rock imprescindível dos Thee Oh Sees, o psicadelismo (agora) funky dos Unknown Mortal Orchestra, os enérgicos Cage, The Elephant, a folk de vistas amplas de Riley Walker, a boa nova australiana representada pelos King Gizzard & The Lizard Wizard (ver entrevista nestas páginas), a colisão funk-soul-hip hop dos Orelha Negra ou os Capitão Fausto em estado de graça. Tem início oficial marcado para 17 de Agosto e longa festa a antecedê-lo: entre os dias 13 e 16, haverá concertos diários na vila, protagonizados por bandas com os Pega Monstro, Bellrays, Duquesa ou Quelle Dead Gazelle.

Grande parte das atenções, porém, estarão concentradas na noite de dia 18, a do regresso dos LCD Soundsystem. Foi naquele mesmo cenário que se estrearam em 2004, num concerto no palco “After-Hours”. Tocaram a seguir aos cabeças de cartaz Motörhead, o que, conta-se, muito agradou a James Murphy, grande fã do trio de Lemmy Kilmister. Era o início da história da banda com Portugal. No ano seguinte, já com o homónimo álbum de estreia lançado e com as atenções centradas neles, tocaram na Casa da Música, desceram a Lisboa para duas datas no Lux, e meses depois, prosseguiram a caminhada até sul para tocarem no Sudoeste.

Rui Maia estava na Casa da Música e recorda um concerto “excelente pela energia em palco e por ser um concerto hipnótico, com uma bola de espelhos a rodar, canções muito longas e um todo um pouco caótico. Muita gente em palco, nada de muito certinho. Vivem muito da energia. Também nesse sentido, acabam por estar muito ligados ao punk”. Isilda Sanches, jornalista e radialista que podemos ouvir actualmente na Antena 3, lembra-se bem daquele impacto inicial. “Vi-os pela primeira vez no Lux e tocaram a Throw do Carl Craig [nome histórico do techno de Detroit]. Nunca tinha ouvido aquela canção tocada ao vivo”. A sensação foi de surpresa feliz: “‘O que é que se está a passar aqui?’ Foi mágico. Ganharam logo ali uma dimensão mítica. Passado muito pouco vi-os no Sudoeste e o fenómeno começou a crescer”, recorda.

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“LCD Soundsystem back from the dead”. Era sob esse título que, em Março, se anunciavam os primeiros concertos da banda foto: Jeff Kravitz/FilmMagic for Bonnaroo Arts and Music Festival

Dois anos depois, já com Sound of SIlver, o segundo álbum, a aumentar-lhes o protagonismo, “culpa” de canções como a congregadora All my friends ou a explosiva “North American scum”, saltaram para o palco principal do Super Bock Super Rock. Tiago André, o actívissimo DJ A Boy Named Sue, “a máquina do tempo do rock’n’roll”, estava lá, mas mais interessado nos então regressados Jesus & Mary Chain. “Os LCD Soundsystem apareceram numa altura em que a toda a hora nos queriam impingir a nova melhor merda disto e daquilo. Os Coral, os Jet… Quando uma banda passa do zero ao hype num instante, uma pessoa desconfia sempre”. Assim sendo, Tiago nunca lhes prestara grande atenção. Tudo mudou naquela noite de 2007. “Depois de ver aquele som electrónico criado organicamente, com tamanha gana e autenticidade, fiquei convencido. Teoricamente estava a ouvir música de dança electrónica, mas para mim era completamente rock’n’roll”.

Voltaríamos a vê-los em 2010, no então Optimus Alive, no último concerto da digressão europeia de promoção a This is Happening. Pela primeira vez, os LCD Soundsystem limitaram-se a um concerto competente, sem a energia contagiante habitual. Dias antes, em entrevista ao Ípsilon, James Murphy dava a entender que o fim estava próximo. “Quer dizer, já fiz 40 anos”, justificou-se. “Não quero ser profissional do rock e desaparecer de casa durante não sei quantos meses. Não significa que não possamos voltar a gravar. Mas este formato de andar em digressão um ano, fazer vídeos e esse tipo de coisas não me interessa. É cansativo”. Que queria James Murphy? “Quero ser eu, apenas isso. Quero dedicar-me à produção, a sessões de DJ, à jardinagem, sei lá”.

Menos de um depois, dia 2 de Abril, os LCD Soundsystem despediam-se com um concerto de mais de três horas de duração, transmitido mundialmente via YouTube. Isilda Sanches seguiu-o pela net e recorda tê-lo acompanhado emocionada. “É o último, mas estão a acabar em grande”. Pedro Fradique, programador do Lux que, ao longo dos anos, foi criando uma relação próxima com James Murphy – ainda antes dos LCD Soundsystem, acolheu Murphy enquanto DJ nas cabines do clube em Santa Apolónia, “a passar música para quase ninguém” -, esteve no Madison Square Garden e em dois dos quatro concertos que a banda deu em antecipação no pequeno espaço nova-iorquino Terminal 5. Uma semana depois, recordava ao Público um concerto “comovente”: “Ficavas indeciso entre olhar para o palco ou para o público. Havia gente a chorar… Comecei atrás e acabei lá à frente. Fez-me sentir um adolescente”. Não no sentido de um regresso ao passado. “Estamos mais velhos, mas ouvir aquela música não é um prolongamento artificial da juventude. É a reconfirmação de a música conseguir juntar pessoas e transcender o seu momento”, explicou então. A banda que representara como nenhuma outra a música sem fronteiras que o século XXI tornaria norma desaparecia com estrondo. Fez-se a festa, quem chorou as lágrimas, limpou-as. Ficava a obra. Só que não.

Mostrarem-se ou esconderem-se

Ana Duarte, que trabalha hoje no gabinete de imprensa do Centro Cultural de Belém, não chegou no início. Em 2007, com 15 anos e a poucas semanas de se estrear em festivais de Verão em Paredes de Coura, descobriu online uma colectânea de música indie. Entre a catrefada de bandas incluídas destacou-se uma. Chamava-se LCD Soundsystem. “Tinha a Daft Punk is playing at my house e teve impacto imediato em mim”, recorda. “Estávamos numa altura em que ainda sentia muita segmentação na música. Havia os Arctic Monkeys, falava-se de brit-pop, de indie, de lo-fi. Categorizava-se demasiado. Os LCD tocavam em todos os pontos. Percebi que revolucionaram um pouco o mundo da música, que se estilhaçou em mil coisas diferentes. Deixou de ser importante a identificação de um género”. Em 2007, Ana Duarte ficou até ao início do Paredes de Coura à espera de ouvir a notícia do cancelamento de uma banda qualquer – na esperança de que os LCD Soundsystem fossem anunciados como banda de substituição. Não os viu nesse ano, não os viu em 2010. Seguiu com atenção o anúncio do regresso, a polémica, as explicações posteriores de James Murphy para ter voltado atrás com a palavra.

A 5 de Janeiro, numa longa carta publicada no Facebook da banda, James Murphy justificou-se. À James Murphy, ou seja, de forma divertida, palavrosa e sincera de forma desarmante. Escreveu que continuara a fazer música após o fim dos LCD Soundsystem, como faz desde a adolescência e que, a determinado momento, se vira com várias canções consideradas aceitáveis em mãos. Perante si, cinco hipóteses. Elencou-as: “1. Fazer música com os teus amigos [o núcleo duro da banda, formado pelo baterista Pat Mahoney e a teclista Nancy Whang] e chamar-lhe outra coisa, o que soa hilariante (Everteen) ou egocêntrico a raiar a sociopatia (um álbum a solo de James Murphy); 2. Fazer música, mas excluir conscientemente os teus amigos por causa do horrores expostos na opção 1; 3. Fazer um álbum dos LCD com os teus amigos, que querem fazer o dito álbum, e lidarmos juntos com qualquer discussão que nasça daí; 4. Não fazer música, para evitar os horrores de tudo o escrito acima; 5. Não fazer música e, sei lá, escondê-la algures”.

Ainda antes da explicação, Ana Duarte já tinha escolhido o seu lado na barricada. “Não quis saber de polémicas. Ainda bem que voltaram. Desde que tenha sido honesto, não quero saber os seus motivos. Ninguém precisa de ficar ofendido. O concerto será a celebração de uma grande banda que parou uns tempos, mas que influenciou e continua a influenciar muitas outras e que ainda terá muito para mostrar”.

Quando leu a carta aberta de Murphy, Tiago André pôs a polémica para trás das costas. “Pode sempre haver muito marketing envolvido, mas pareceu-me sincero e honesto. A forma como se põe à nossa frente, despido e a dizer o que lhe vai na alma fez-me acreditar nele. Consegui pôr-me no lugar dele”. Na noite de véspera de Natal, os LCD Soundsystem lançaram uma nova canção, Christmas will break your heart, assombrada pelo espírito de Lou Reed e Roxy Music (e sininhos à Phil Spector). “Caiu-me perfeita. Ouvi-a umas 20 vezes seguidas”, conta Tiago.

Isilda Sanches, por sua vez, largou uma gargalhada ao saber que renasciam do mundo dos mortos. Lembrou-se imediatamente de uma entrevista que James Murphy lhe dera pouco depois do anunciado fim da banda, quando de uma passagem enquanto DJ pelo Lux. “Perguntei-lhe se os LCD Soundsystem alguma vez iriam voltar e ele garantiu-me que não. Disse-me ‘se alguma vez voltarmos, podem dar-me um murro nas trombas’. E senti que estava a ser totalmente honesto naquele momento”. O curioso é que, quando acabaram, Isilda achou que essa era a decisão correcta. Quando soube do regresso, igualmente.

“Estou-me a marimbar para a polémica do regresso”. Claro que haverá muito dinheiro a ser pago à banda para voltar às digressões, mas Pedro Fradique é directo. “Vi três dos concertos de despedida. Foram concertos e dias incríveis e claro que todo o ambiente ganhou outra densidade por o julgarmos irrepetível, mas o regresso não me vai retirar o que vivemos ali. Peso a questão da incoerência artística com o ganho que terei, recordo que todos vivemos cheios de incoerências, e concluo que poder voltar a vê-los me deixa muito entusiasmado. Há outro Beat Connection [lado B do primeiro single, Losing my edge, editado em 2002] para fazer passado este tempo todo? Quero ouvi-lo”.

Mesmo Rui Maia, céptico perante a decisão de ressuscitar a banda – “parece haver um pouco de falta de respeito pelos fãs” -, diz que gostaria de os reencontrar em palco. “De certeza que que darão um excelente concerto. São muito bons ao vivo e ainda não são um exercício de nostalgia. Ainda não é a mesma coisa que ir ver os Duran Duran. Apesar de estar um bocado contra este regresso”, reafirma, “quando sair o novo disco vou comprá-lo como comprei todos os outros”. Há uma razão para o regresso potencialmente polémico, e seria sempre polémico de alguma forma, dado que tudo é polémico nalgum recanto deste mundo que respira através das redes sociais, parecer agora tema razoavelmente pacífico. Recuemos.

A perder a vantagem

O início é uma furiosa descarga de ruído, com guitarras e uma bateria endiabrada em colisão, som acrescido de ruídos electrónicos e ainda mais distorcido por boa patifaria de estúdio. Dez segundos depois, todo o ruído é sugado e desaparece para surgir em seu lugar uma batida e linha de sintetizador minimal. Hão-de juntar-se pratos de choque e tarola de uma house orgânica, há-de fundir-se essa pista de dança com outra pista de dança, a do rock’n’roll que também se dança. E enquanto tudo isso acontece, ouve-se uma voz que canta falando e que fala do raio dos miúdos que pensam que sabem tudo, que sacaram todos os discos que interessam a semana passada e sabem tudo sobre eles. Miúdos que vivem uma “borrowed nostalgia for the unremembered 80s”. Música física – todos concentrados no ritmo. Música que é, também, totalmente, aquele manifesto de desespero geracional em que James Murphy, é ele que canta, se vai implicando. A piada é também sobre.

Logo ao início, já estava ali o humor não isento de angústia que seria imagem de marca de Murphy. Ouvimo-lo e dançamos, sorrimos com a transparência exibida. Ele esteve lá quando os Can deram o primeiro concerto em Colónia. Ele esteve lá, em 1974, quando os Suicide ensaiavam num loft em Nova Iorque. Ele foi o primeiro gajo a tocar Daft Punk para os miúdos do rock. Ele nunca se enganou. Ele trabalhou numa loja de discos e teve os discos todos antes de toda a gente. Ele está a ser ultrapassado, confessará por fim. “I’m losing my edge / to better looking people / with better ideas / and more talent / and they’re actually really, really nice”.

“Quando ouvi o que James Murphy estava a dizer na canção foi quase perturbante”, recorda Isilda. “’Quem é este tipo e porque é que ele está a dizer aquelas coisas, de coração nas mãos, e a pôr as entranhas cá fora?’”, questionou-se. Losing my edge tornou-se um marco pela forma como reflecte, em registo pessoal facilmente partilhável, um mundo em mudança. Ponhamos as coisas em perspectiva. Estamos no início dos anos 2000. “A primeira vez que os 2 Many DJs [a dupla belga que forma também a banda Soulwax] vieram ao Lux eram uma coisa nunca vista: passavam Nirvana, depois Carl Craig, depois Peaches”, lembra Pedro Fradique. “Esse momento coincide com o advento deles”. Rui Maia põe na mesa outro nome, os Rapture, o seu single House of jealous lovers, que inaugurou o reinado do “cowbell” como instrumento mais cool do universo, e o álbum onde seria incluído, “Echoes”, produzido por James Murphy. “Considero essa canção, e o álbum, mais importantes na altura que os próprios LCD Soundsystem, na forma como conjugavam pós-punk e electrónica”. Aliás, acentua, foi aquele single que suscitou a criação da DFA, a agora histórica editora nova-iorquina fundada por Murphy e pelo britânico Tim Goldsworthy. “Foi nessa sequência que surgiram uma série de outras bandas, como nós, os X-Wife, como os próprios LCD Soundsystem” – quando os Rapture abandonaram a editora, Murphy e Goldsworthy consideraram importante ter uma banda semelhante na editora; não havendo nenhuma, criaram-na eles.

Podemos encontrar a principal motivação para o nascimento dos LCD Soundsystem em declarações recentes. Em 2014, em entrevista à Q, James Murphy falou do que rege os seus impulsos criativos. “Não quero escrever um livro para poder ser escrito, quero escrever por sentir que existem assuntos sobre as quais quero escrever. Isso é o início de tudo: 'Isto é uma trampa? E, não sendo uma trampa, é necessário?' Gosto de fazer coisas que, de certa forma, sinta que estão a faltar, coisas com as quais me sinta bem e honesto”. No início do século XXI, como bom melómano obcecado com a história, revolveu a sua colecção de discos e, misturando todo, criou a música que sentia faltar ao seu tempo. “Num certo sentido, são quase uma banda tributo”, provoca Isilda Sanches. “Logo no ‘Losing my edge’ dizem de onde vêm e quais são as suas referências. Muito é quase decalcado do passado. Há canções que citam bandas directamente, até os The Fall. O exemplo mais evidente será o 45’33’’ [edição em formato digital gravada para a Nike em 2006], que até no título lembra o E2 E4 do Manuel Göttsching (1984)”. E os LCD não se limitavam a fazer a festa das referências. “Na mesma altura em que os descobri, encontrei também os Hot Chip”, diz Ana Duarte. “Até os achei semelhantes, mas os LCD Soundsystem destacavam-se. É festa, como o são os Hot Chip, mas têm algo de mais introspectivo, mais profundo”.

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Os LCD Soundsystem foram a banda que melhor representou, em som e discurso, o estado da música desde que se anunciou o século XXI foto: Erika Goldring/Getty Images

Nos anos que inauguraram o processo de “Retromania” que o jornalista e escritor Simon Reynolds passaria a livro em 2010, - “os anos 2000 foram muito os anos da nostalgia, todos voltámos atrás”, recorda Isilda - os LCD Soundsystem deram o passo em frente ao unir pontas soltas de vários passados, enlaçando-as firmemente através da voz e talento de um trintão, sem qualquer pinta de estrela rock, mas capaz de criar um estrelato inesperado através da auto-ironia, do comentário atento ao que o rodeava e de uma entrega sincera às canções - essas que Rui Maia ou Tiago André passam nos seus DJ sets e que continuam a provocar sobressaltos felizes na pista de dança. Como diz Maia, James Murphy “é o tipo normal que faz música mas, ao mesmo tempo, é o rei do ‘cool’, o tipo que qualquer músico indie quer ser. Um gajo relaxado e simples, que faz a sua música, que acaba por ser bem acolhida, um homem que é excelente na produção e que pode fazer o que quiser”.

Em reportagem no último Primavera Sound de Barcelona, onde os LCD Soundsystem deram o seu primeiro concerto em território europeu após a reunião, o Ípsilon deu conta de uma actuação em que a energia se mantinha igual a outrora. “A única diferença”, escrevemos, “é que a maior distância temporal intensificou a ideia de que muitas das suas canções se transformaram em hinos geracionais para quem os viu crescer nos anos 2000”. Mas quem não estava lá, parafraseando a canção que iniciou tudo isto, “Losing My Edge”, quer estar agora e não quer saber de conflitos geracionais. Viajando pelas caixas de comentários de vídeos dos LCD Soundsystem no YouTube, não é difícil encontrar um francês a escrever “não tenho mais que 19 anos e, portanto, adoro esta música”. Ou gente que, até agora, se manteve, sabe-se lá como, ignorante da banda mas que, a partir de agora, se ocupará a recuperar o tempo perdido. “Nunca tinha ouvido falar deles. Por sorte, tropecei neles no Open’er Festival na Polónia... Melhor concerto a que assisti em toda a minha vida”, escreveu o mês passado alguém chamado Erik Trefftz. “Aconteceu-me o mesmo em Roskilde [festival dinamarquês]”, respondeu um Stig Olsen.

Em 2005, primeiro álbum acabado de editar, James Murphy dizia ao Ípsilon: “É duro estar longe de casa e de projectos que quero concretizar, compor música, produzi-la, criá-la, actuar como DJ, ler livros, ir ao cinema… […] Arrepender-me-ia toda a vida se não estivesse a fazer isto, mas não consigo, de forma clara, dizer que estou a amar. É um conflito sem fim”. Que continua. Mas agora temo-lo de volta, depois de uma pausa em que se ocupou a ser pai, a imaginar o design sonoro do metro de Nova Iorque, a criar um aroma de café, a produzir os Arcade Fire, a colaborar no último disco de David Bowie, a assinar bandas-sonoras para peças na Broadway, a trabalhar com o amigo realizador Noah Baumbach ou a gerir a DFA, a editora que, há muito, muito tempo, foi o epicentro de toda esta aventura.

Há um concerto a chegar até nós. Há um novo álbum a ser preparado. Tolos seríamos se não aproveitássemos a resolução (momentânea?) do eterno conflito de James Murphy. Venham daí os LCD Soundsystem. Precisamos deles.

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