Os Saturnia inventam o seu tempo

The Real High assinala os 20 anos dos Saturnia. A passagem do tempo é ilusória. Esta viagem cósmica não está preocupado com as miudezas do mundo.

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Saturnia: alheios à sua época, a qualquer época

Pensando em termos puramente cronológicos, 20 anos são uma eternidade. Se o são na vida de um humano, na vida de uma banda são-no ainda mais. Há vinte anos, Beck lançava a sua obra-prima, Odelay, DJ Shadow mostrava o seu génio em Endtroducing, “grunge” ainda parecia expressão da actualidade e o futuro anunciava-se em electrónica com conceito acoplado (habitualmente em forma de vídeo projectado sobre o artista dobrado sobre um laptop).

1996 foi há tanto que quem viveu ali a adolescência tardia ou a juventude a sério pode referir-se a esse ano com aquela expressão, sempre constrangedora, que é “no meu tempo”. Suspeitamos que Luís Simões, o homem que criou os Saturnia em 1996, nunca cairá no erro de utilizar a expressão. Ouvimos The Real High, o álbum que editou duas décadas depois de revelar os Saturnia, e percebemos como eles agem de acordo com outras regras, as do universo que começou a construir pela ideia de reunir ferramentas electrónicas, trance e breakbeat ao gosto pelas divagações cósmicas da década de 1970.

Simões foi investigando esse universo ao seu ritmo, conscientemente alheado do aborrecido correr do mundo, parando para observar com atenção todas as imagens utilizadas para criar o mosaico na capa de Saucerful of Secrets, o segundo álbum dos Pink Floyd, demorando-se numa galáxia com as formas redondas e geometricamente perfeitas de uma canção escorreita ou investindo em conhecer mais daquela civilização, por trás da nebulosa idenficada lá muito longe, que se organiza enquanto confluência sem hierarquia de todos os saberes.

Assim foram passando os anos. Por vezes parecia que o perdíamos de vista mas, de tempos a tempos, Simões ressurgia perante nós com novo resultado das suas viagens. Ouvimos Saturnia, The Glitter Odd, Hydrophonic Gardening, Muzak, Alpha Omega Alpha. 1999, 2001, 2003, 2007, 2012. E agora The Real High. Saturnia a comunicar novamente. Alpha Omega Alpha era o disco de criatividade transbordante, álbum duplo, álbum súmula de todo o conhecimento acumulado. The Real High é o álbum de 2016 de Saturnia, versão compacta do seu antecessor, mas o ano de edição é irrelevante. Luís Simões (e Tiago Marques, seu co-viajante desde 2012) mantém os Saturnia alheios à sua época, a qualquer época: esta é música que ambiciona transcender (e levar-nos a transcender).

Ouvimos sons orgânicos criados digitalmente e velhinhos sintetizadores analógicos anunciando-se ainda como futuro. Ouvimos turbulência enquanto os timbalões ribombam, o Moog acelera e o didgeridoo lança o seu uivo grave. Ouvimos a voz que caminha lentamente sobre a melodia dedilhada na guitarra subaquática e avançamos de The real high a Mandrake scream, de Heavenly body àquele final jazz-rock de Most beautiful, piano eléctrico e Moog a sucederem-se com prazer pela elegância. Ouvimos tudo isto, 20 anos depois de os Saturnia se apresentarem perante nós e duas décadas são tempo nenhum e nem temos a certeza de 2016 ser realmente o ano em que The Real High foi editado. Ainda assim, venham mais 20. Ou mais 20 mil anos-luz. Ou 20 mil léguas submarinas. Venham mais, simplesmente.

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