Intolerável injustiça

Um olhar visionário — e mais actual do que no seu próprio tempo — sobre a intolerância como fenómeno viral

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Roland Barthes sobre Voltaire: “Ninguém melhor do que ele deu ao combate da Razão o estilo de uma festa” DR

Todos já ouvimos falar em Voltaire (1694-1778), nem que seja por causa de O Poema sobre o Desastre de Lisboa. Prolixo, fremente, viajante, perseguido, aplaudido e consagrado, foi, segundo Roland Barthes (Ensaios Críticos), o último escritor feliz, talvez por não ter aprofundado a densidade trágica da diferença, a inexorabilidade de cada um e de cada lugar. Não teve filosoficamente nenhuma força viva com quem se confrontar. Três anos depois da sua morte, as suas cinzas seriam transferidas para o Panteão.

A Antígona, numa tradução de José M. Justo, editara em 1999 o Tratado sobre a Tolerância que agora, noutra tradução, a Relógio d’Água republica. Síntese biobibliográfica do autor: filho de um modesto notário de Paris, apesar de mais tarde se ter recriado origens aristocráticas, estudou no colégio jesuíta Louis-le-Grand, onde aprendeu Latim e Retórica, disciplinas que teriam acalentado desde cedo a sua verve, o seu brilho, o seu nervosismo estilístico. Criador irrequieto, palmilhou quase todos os géneros — a carta, a poesia, a ficção (sublinhem-se as mais conhecidas: Cândido ou O OptimismoZadig ou o Destino), e o teatro (alvo de grande sucesso público) — e, naturalmente, colaborou com Diderot e D’Alembert no Dicionário Filosófico.

O caso notável que desencadeou este Tratado sobre a Tolerância foi o de uma condenação à morte no ano de 1762, em Toulouse, sob a pressão de uma horda de fanáticos religiosos: o assassinato de Jean Calas. O episódio decorreu no lastro das dissensões entre protestantes e católicos em França, num contexto de crise económica e na sequência da Guerra dos Sete Anos, que opôs a França e a Grã-Bretanha e respectivos aliados. Aquele homem, de 68 anos, huguenote (calvinista), era um rico negociante em tecidos, um bom chefe de família, tido como bom pai por todos os que o rodeavam, incluindo uma criada católica que lhe tinha educado filhos. Um deles, Louis, tinha-se convertido aliás ao catolicismo. Outro, Marc-Antoine, mais dado às letras, espírito sombrio e violento, não conseguindo entrar no negócio nem exercer advocacia por lhe faltarem os atestados de catolicidade, e visando uma conversão mas tendo perdido ao jogo todo o dinheiro que tinha, decidiu um dia executar, segundo Voltaire, um projecto que trazia consigo: enforcar-se. Ao encontrarem o corpo, o irmão Pierre e um amigo vindo de Bordéus e entretanto convidado a cear, Lavaisse, correram aflitos à procura do socorro de um médico, enquanto os pais em pranto carpiam em alta voz o desgosto. Suicídio ou assassinato? O corpo terá sido recolhido a fim de evitar o tratamento público concedido Àqueles que se suicidavam: cadáver arrastado pelas ruas, puxado por um cavalo, rosto virado, corpo vilipendiado à passagem pela populaça, antes de entregue ao lixo. A dita, electrizada, clamou ter sido Marc-Antoine vítima do velho pai, coadjuvado por um irmão e pelo amigo chegado de Bordéus, tudo por ameaçar converter-se ao catolicismo. Um fanático gritou que Jean Calas tinha enforcado o próprio filho. E, num momento, o grito, repetido, tornou-se unânime. “Os espíritos, uma vez excitados, já não param (...). Ou os juízes de Toulouse, levados pelo fanatismo da população, fizeram supliciar na roda um pai de família inocente, o que é sem exemplo; ou esse pai e a mulher estrangularam o seu filho mais velho, ajudados nesse parricídio por um outro filho e por um amigo, o que é contrario à natureza. Num e noutro caso, o abuso da mais santa das religiões produziu um grande crime. É, pois, do interesse do género humano examinar se a religião deve ser caridosa ou bárbara.” 

O caso sobe à mais alta instância, a Paris, onde a razão prevalece sobre o fanatismo, enquanto na província quase sempre o fanatismo prevalece sobre a razão. Mesmo reconhecendo que se tinham enganado, o que permitiria a reabilitação da viúva e dos seus próximos, os conselheiros do Languedoc consideraram que a magistratura não devia ser imolada. Pierre Calas exila-se em Genebra, encontra Voltaire, então também refugiado por exercício do espírito critico e defesa da justiça e da liberdade religiosa, e daí nasce a carta sobre a (in)tolerância, a pretexto da qual Barthes começa um ensaio interrogando-se: “Que há, hoje, de comum entre nós e Voltaire? De um ponto de vista moderno, a sua filosofia é antiquada (...). A partir dele, a história enterrou-se numa dificuldade que dilacera toda a literatura comprometida, e que Voltaire não conheceu:‘não há liberdade para os inimigos da liberdade’. Em suma, aquilo que talvez nos separe de Voltaire é que ele foi um escritor feliz, o último. Ninguém melhor do que ele deu ao combate da Razão o estilo de uma festa.”

Neste Tratado sobre a Tolerância, o alvo a combater era a intolerância religiosa, leia-se o obscurantismo da Igreja católica. A guerra que a intolerância engendra, como ela se propaga e adensa e arrebata mais e mais a cada passagem. Este ponto de um fanatismo viral que o autor anuncia é mais actual hoje do que no tempo do autor e de Barthes. E é muito interessante segui-lo. Com espírito e brilhantismo, sobrepondo porém religião e espiritualidade, numa tonalidade irónica, deliciosa, por vezes hilariante, quase panfletária, Voltaire percorre vários momentos da História, aponta para várias geografias, condenando sempre a religião católica. 

O tempo de Voltaire, o declínio do Ancien Régime, estava de feição, estava do lado da História: “A maneira mais eficaz de diminuir o número de maníacos, caso ainda exista, é entregar essa doença do espírito ao regime da razão que lenta, mas infalivelmente, esclarece os homens.” A concepção de razão do autor é universal, atravessa continentes, mantendo a imobilidade. Olhando hoje à volta, melancolicamente esboçaríamos um sorriso. 

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