Inquietar a visão

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A atmosfera dos trabalhos e das exposições de Diogo Pimentão é sempre densa, nocturna e muito poética. As suas obras negras são princípios de muitas experiências e nunca se deixam reduzir a simples superfícies receptivas primeiro aos gestos do artista e, depois, aos movimentos do espectador. Obras que são superfícies, que são corpos, que são espaços e que transportam para a cena expositiva diferentes movimentos e intensidades.

A mais recente exposição de Pimentão na nova galeria de Lisboa Múrias Centeno é composta exclusivamente por obras sobre tela e obras sobre papel em que a bidimensionalidade é, aparentemente, o denominador comum: superfícies que recebem o grafite e se transformam em espaços negros e intensos. Poder-se-ia pensar que o resultado desta acção artística seria um rectângulo de cor, sem diferenciação, homogéneo, indiferenciado. Mas em nenhum momento estes rectângulos são idênticos: cada zona destes desenhos/pinturas é distinta e transporta-nos para uma zona sensível diferenciada, obrigando a sucessivos reposicionamentos do modo como nos aproximamos deles, isto é, a adaptações na forma como o corpo, a visão, a imaginação e o pensamento se colocam na sua frente.

Estas obras têm uma filiação na arte minimal e em artistas como Tony Smith, Richard Serra ou Fernando Calhau, uma filiação que não é da ordem da cópia ou da citação, mas da partilha de uma mesma inquietação e, sobretudo, da mesma magia. E aqui magia diz respeito ao modo como um cubo ou uma superfície totalmente negras são mostrados enquanto coisas mágicas que não dizem nada, não expressam nada, não imitam ou representam coisa alguma e, mesmo assim, expelem infinitas imagens e são motivo de uma enormidade de experiências. Há nestas obras um radical jogo de esvaziamento — de referências, conteúdos, significados ou símbolos — do qual resulta a assunção de obras totalmente virtuais nas quais se podem inscrever todas as experiências, todos os significados, todas as narrativas.

Didi-Huberman coloca a questão radical relativamente aos cubos de Tony Smith de saber a partir de onde olhamos estas obras, a partir de onde estabelecemos uma relação com aquelas formas que, aparentemente, nada dizem. São coisas excessivamente simples, sem qualquer narrativa ou figura, mas que nessa sua radical simplicidade activam a imaginação e fazem o espectador olhar para dentro de si; ou seja, são obras que apresentam um negro essencial face ao qual o olhar se humano se transforma num abismo, descobrindo-se na sua potência produtiva de gerar fantasias e imagens do mundo.

Não há aqui nenhum tipo de tautologia em que as imagens negras se dizem a elas mesmas sem acrescentar mais nada; estas obras de Pimentão são dialécticas no sentido em que são interpeladoras, possuem uma energia que a cada olhar se vai libertado e, neste sentido, estão sempre a apontar para além de si próprias e a fazer do lugar da relação com o espectador o seu espaço principal de definição.

Está em causa uma muito peculiar inquietação do olhar que não é provocada por nenhum tipo de narrativa, mas pelo vazamento de todo o conteúdo da imagem, face ao qual o olhar se vê livre de todos os seus constrangimentos e da sua definição enquanto estrutura exclusivamente de registo da visualidade do mundo. O paradoxo importante que estes trabalhos põem a descoberto é como conseguir fazer ver a partir de um lugar onde nada se vê a não a ser a sua própria contigência: é o resultado de, no escuro, olhar para a escuridão da noite.

Collinear Breath

é fértil na maneira como nos lança no questionamento da escuridão dupla que habitamos: a de onde vimos e aquela para onde vamos. Mas é uma exposição desigual. Numa das paredes, um painel lembra a escultura emblemática

House of Cards

, de Richard Serra, em que as pesadas placas de aço estão apoiadas umas nas outras, sendo essas forças de tracção e suporte que compõem o objecto escultórico. No caso de Pimentão, o jogo de tensões é representado por um conjunto de telas negras que aparentam estar suspensas umas nas outras e tirar partido de vazios e intervalos, para depois se descobrir que essas tensões são inexistentes e se trata de um

trompe-l’oeil

. O problema desta ilusão não é o de ser ilusória (a boa arte é sempre um importante e bem sucedido truque de ilusionismo) mas o de não ser bem conseguida. Porém, se este painel falha na concretização da ilusão que parece ser a sua premissa, os desenhos de pequenas dimensões que se dobram sobre si mesmos, introduzindo profundidade, espessura e interioridade na experiência desta exposição, são excelentes e mostram as qualidade inegáveis do trabalho deste artista. 

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