Imagens do horror

A Noite Cairá, de André Singer e O Homem Decente, de Vanessa Lapa são dois filmes fortíssimos, como é óbvio, pelo que documentam e pela natureza das imagens que mostram.

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Como uma rima para a estreia de O Último dos Injustos, chegam em simultâneo às salas dois filmes em que o Holocausto, directa ou indirectamente, é o tema.

A Noite Cairá

, de André Singer, é uma espécie de

making of

, para o dizer em linguagem simplificada, da versão reconstituída de

German Concentration Camps Factual Survey

recentemente apresentada no DocLisboa, o filme com que os Aliados, logo a seguir ao final da II Guerra, pretenderam documentar o rasto de atrocidades deixado pelos nazis mas que acabaram por abandonar, permanecendo inacabado e invisível durante décadas.

O Homem Decente

, de Vanessa Lapa, é um mergulho no interior do lado negro: uma viagem à psique de Heinrich Himmler, um dos principais responsáveis directos pela execução do genocídio, baseada em correspondência e outros documentos que cobrem praticamente toda a sua vida, da juventude aos últimos dias.

São dois filmes fortíssimos, como é óbvio, pelo que documentam e pela natureza das imagens que mostram — sobretudo o primeiro deles, que se debruça sobre as imagens mais brutais e terrificantes que câmaras de cinema alguma vez captaram. Se essa brutalidade foi, por diversas razões (incluindo a vontade de não massacrar ainda mais um povo alemão já suficientemente arrasado psicológica e moralmente), um dos motivos por que a Factual Survey foi então arquivada, quanto mais o tempo passa mais o confronto com elas parece fazer sentido — como o intuiu aquele general americano que, conta-se, ao entrar num  dos campos em solo alemão deu imediatamente ordem para que se filmasse tudo, “ou um dia vão negar que isto tenha existido”. Através de depoimentos, muitos deles surgidos em imagens de arquivo, vindos de americanos, ingleses ou soviéticos, é justamente este choque — o choque das primeiras testemunhas — que A Noite Cairá documenta com mais força, independentemente das histórias e das peripécias (como por exemplo o envolvimento de Alfred Hitchcock na concepção original do filme).

Algumas imagens do horror também aparecem em O Homem Decente. Mas aqui o horror é, sobretudo, interior, é “na mente de um nazi”. Através da correspondência de Himmler ao longo de décadas, sobretudo das cartas que escreveu para a mulher e que a mulher lhe escreveu a ele, lidas em voz off, assistimos a uma progressão demoníaca, do germe das convicções racistas e nacional-socialistas à sua completa metamorfose em monstro absoluto. A “decência” era o valor supremo de Himmler, o sentido do dever — e do que, em nome da “decência”, devia ser feito — a sua perfeita manifestação. É este retrato de uma convicção inabalável de que se trabalha para um “bem”, superior e pré-determinado, que faz de O Homem Decente um autêntico filme de horror. E que quase dispensava as imagens que acompanham a locução: o Mal, aqui, vem da voz, o Mal é a voz.

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