Homens e animais

Na semana passada, um cão chamado Excalibur, eventualmente contaminado com o vírus do ébola, foi motivo de encarniçadas contestações de repercussão internacional ao seu abate. A causa da defesa dos animais dá quase sempre origem a um diferendo, mais do que a um mero litígio. Há diferendo quando deixa de haver uma plataforma universal a partir da qual as duas partes se possam entender; há litígio quando as duas argumentações obedecem às regras de um mesmo género de discurso, de um mesmo “jogo de linguagem” (um conceito de Wittgenstein que o filósofo francês Jean-François Lyotard convocou para a sua teoria do diferendo, a que me refiro). A Assembleia da República é o lugar por excelência de dissimulação dos diferendos em litígios, da dialéctica encenada, dos litígios que são afinal uma pura máscara, do encadeamento homogéneo de todos os discursos. O diferendo, que não é sempre uma coisa má, é uma ruptura desse continuum, é a impossibilidade de encadear um discurso noutro, mesmo que sob a forma da oposição e do conflito. O jogo parlamentar-democrático, na sua versão mais vazia, que é a regra, não consente o diferendo mas precisa do litígio, dos falsos diálogos e dos falsos debates, das falsas perguntas e das falsas respostas, das falsas interpelações e das falsas aclamações. Mas voltemos à questão inicial: se uma das partes argumenta que não há dúvida de que é necessário matar o cão preventivamente para proteger as pessoas que são parte da humanidade, e a outra, ainda que de maneira instintiva, oferece resistência à ideia de humanidade e nos seus discursos mais elaborados chega a dizer que a sua luta é precisamente contra a máquina antropológica do humanismo por ter percebido que esta provocou e legitimou os maiores crimes da História, então estamos perante dois discursos que têm as suas regras próprias e não há um lugar neutro e uma regra universal de onde seja possível extrair argumentos aplicáveis aos dois. Ou seja, há um diferendo porque cada uma das partes deixa de ter, perante a outra, meios para argumentar. E, nessas circunstâncias, até as pessoas mais cordatas sentem vontade de desatar aos tiros. Deixando de haver uma linguagem comum, o conflito só se resolve à força (da lei ou da polícia), ou radicaliza-se em forma de terror, no caso do diferendo extremo de que o terrorismo é expressão. A questão dos animais, vista para além das sua manifestações de superfície, é muito interessante do ponto de vista político. Algo radical aconteceria se saíssemos do discurso e da prática da exclusividade humana e agíssemos em conformidade com o facto de que o mundo em que vivemos é olhado por outros seres e não apenas pelo homem, do alto da criação. Pode ser que no plano dos efeitos práticos já seja demasiado tarde, mas no plano do pensamento nunca é tarde para inventar e projectar uma nova política. É isso que está anunciado nos seminários de Derrida publicados em L’animal donc que je suis (2006), uma das estações obrigatórias no acesso à questão da política e do direito do animal e à política da relação entre o homem e o animal. Derrida pensa aí toda a questão animal enquanto questão também política e revê o tradicional “limite abissal” entre o homem e o animal, partindo de um episódio pessoal, da experiência de um olhar do qual se sentiu objecto: ao sair do banho, nu, e no quarto, um pudor fê-lo prestar atenção ao facto de estar a ser observado pelo seu gato. A experiência de Derrida foi a de ver que aquele gato o via, o olhava, e por esse olhar ele sentiu-se exposto na sua nudez. 

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