Nelson Freire, um dos “protegidos” de Olga Cadaval, abre Festival de Sintra

No ano em que chega à 50.ª edição, o Festival de Música de Sintra, que começa este sábado com um recital do pianista brasileiro Nelson Freire, presta tributo à marquesa de Cadaval (1900-1996), sua impulsionadora e patrona desde a primeira hora.

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O recital de Nelson Freire será no Centro Olga Cadaval DR

O fio condutor da programação do Festival de Música de Sintra, que abre este sábado à noite com um recital do pianista brasileiro Nelson Freire, é a figura e o legado da marquesa de Cadaval (1900-1996), exemplo único de mecenato musical no Portugal do século XX, que o festival dirigido por Adriano Jordão quis homenagear nesta sua 50.ª edição.

Entre os “protegidos” da marquesa que vieram a tornar-se se músicos célebres, “Nelson Freire é um dos mais conhecidos”, diz Adriano Jordão, lembrando ainda pianistas como os argentinos Daniel Barenboim e Martha Argerich, o norte-americano Stephen Bishop-Kovacevitch, ou o também brasileiro Roberto Szidon, desaparecido em 2011, todos eles apoiados, em algum momento, por Olga Cadaval, como ficou conhecida após o seu casamento com António Caetano Álvares Pereira de Melo (1894-1939), primeiro e único marquês de Cadaval.  

O festival organiza-se em cinco fins-de-semana consecutivos, e cada um deles propõe um tema próprio. O do primeiro é o “diálogo de gerações”, ilustrado na associação do veterano Nelson Freire, de 70 anos, que tocará obras de Bach, Beethoven, Shostakovitch, Debussy e Chopin, a dois jovens prodígios do piano, que actuarão no domingo: Varvara Kutosova, do Cazaquistão, uma pianista que aos 11 anos tem já um considerável currículo internacional, e o russo Alexander Malofeev, de 13 anos, vencedor da última edição do prestigiado prémio Tchaikovski para jovens músicos. Kutosova interpretará composições de Chopin, Schumann, Debussy, Scriabin e Rachmaninov, e Malofeev tocará Tchaikovsky, Stravinski e Liszt.

O pianista Adriano Jordão está certo de que a marquesa de Cadaval, se fosse viva, gostaria de assistir à prestação destes dois intérpretes, já que a aristocrata de origem italiana não só tinha uma particular paixão pelo piano, como sempre se preocupou muito especialmente com os jovens músicos. “Abria-lhes as portas da sua casa de Sintra e alojava-os meses seguidos”, garante Jordão. “Foi através dela e das suas relações pessoais que os maiores nomes da música vieram a Portugal”, diz ainda o director do festival.

Se o recital de Nelson Freire irá ser no Centro Olga Cadaval, já os de Kutosova e Malofeev terão como cenário o belíssimo Palácio da Pena. Aproveitando o notável património sintrense, o festival aposta também na dimensão turística e distribui os seus concertos por alguns dos mais deslumbrantes palácios locais. E este ano, numa tentativa de levar o festival à generalidade da população do concelho, vários concertos vão ser transmitidos em directo, via streaming, em locais públicos das freguesias mais populosas.

O segundo fim-de-semana (15 a 17 de Maio) é dedicado à música de câmara, uma das paixões da marquesa de Cadaval, e começa com um concerto, no Palácio Nacional de Sintra (também conhecido como Palácio da Vila), do violinista francês Frédéric Pelassy e da pianista marroquina Ghizlane Hamadi, que interpretarão peças de Poulenc, Ravel e César Franck, e ainda La plainte de Lounja, do jovem compositor e musicólogo marroquino Nabil Benanbdeljalil. Nos dias seguintes, Teresa Schönborn, neta da marquesa de Cadaval, acolhe na sua casa de Sintra, a Quinta da Piedade, o Trio Aeternus – formado em 2013 por um violinista inglês, um pianista polaco e um violoncelista arménio – e o Quarteto de Moscovo, fundado em 1989 por iniciativa do pianista Alexei Eremine e do violoncelista Guenrikh Elessine.

A 22 de Maio, o festival muda-se para o Palácio Nacional de Queluz, onde a pianista Anna Pavlova abre um fim-de-semana de “piano romântico” com várias obras de Liszt, a começar pela sua transcrição para piano solo do célebre Lied que Schubert compôs a partir do poema Erlkönig de J. W. Goethe. Depois do recital de Pavlova, que tocará ainda Balakirev, Scriabin e Stravinsky, o festival volta à Quinta da Piedade com o pianista americano Jeffrey Swan (dia 23), que tocará peças de Chopin e Liszt, e a pianista ucraniana Anastasyia Naplekova (dia 24), que escolheu obras de Haydn, Rachmaninoff, Manuel de Falla e Tchaikovski.

“O pianismo romântico é uma das idiossincrasias do Festival de Sintra”, diz António Jordão, lembrando ainda que Jeffrey Swan foi um dos muitos músicos que chegou a viver por algum tempo em casa da marquesa de Cadaval.

Mas enquanto homenagem a Olga Cadaval, o ponto alto do festival é o 4º fim-de-semana, no Palácio Nacional de Sintra, com três dias expressamente dedicados à mecenas. “Lembramos a sua figura pessoal, os seus amigos, a sua cidade de Veneza [descendia dos Mocenigo, que deram sete doges à antiga República veneziana], os autores de que ela mais gostava”, inventaria Adriano Jordão.

Na sexta-feira, 29, o Quarteto Lopes Graça sobe ao palco acompanhado pela pianista Olga Prats, que “é afilhada da marquesa de Cadaval, e por isso se chama Olga”, explica o director do festival. Vão tocar obras do próprio Fernando Lopes Graça, de Shostakovich e de Igor Stravinski, que foi um amigo chegado da mecenas italo-portuguesa, cuja casa de Veneza frequentava regularmente. Outra visita habitual do seu palácio veneziano era o compositor inglês Benjamin Britten, que em 1964 compôs mesmo uma peça em sua homenagem: Curlew River.

No dia seguinte a música cruza-se com a poesia no programa Ausências: os actores Leonor Seixas e Paulo Pires lêem poemas relacionados com os tópicos da ausência, da saudade e da noite, enquanto a pianista Carla Seixas interpreta peças evocativas dos mesmos tópicos. A escolha dos poemas é prometedora, com textos de grandes poetas portugueses de várias gerações, de Camões a Garrett, e de Pessanha e Pessoa a autores mais recentes, como Vitorino Nemésio (outro amigo de Olga Cadaval), Carlos de Oliveira, Sophia, António Ramos Rosa, Ruy Belo ou Luís Miguel Nava.

O concerto Evocações, no domingo, que reunirá no palco os pianistas Olga Prats e João Paulo Santos e os cantores líricos Sandra Medeiros, Carolina Figueiredo, João Rodrigues e André Henriques, será inteiramente composto de obras que integravam as afinidades electivas da marquesa. Vivaldi, Rossini, Mendelssohn, Schumann, Gounod, Hahn e Poulenc são alguns dos autores representados. E a abrir o programa, Claudio Monteverdi (1567-1643), cuja obra cénica e musical Combatimento di Tancredo e Clorinda foi encomendada por Girolano Mocenigo, um dos doges da família, e representada pela primeira vez no seu palácio veneziano.

O fim-de-semana de encerramento é de novo no Palácio Nacional de Queluz, com um concerto comemorativo dos 40 anos do Conservatório Musical de Sintra (dia 5 de Junho) e uma apresentação ao ar livre da Carmina Burana, de Carl Orff, no largo fronteiro ao palácio (dia 6), que será interpretada pela Banda Sinfónica da GNR, acompanhada por dois coros e vários solistas. O concerto, explica Adriano Jordão, é um tributo ao condestável Nun’Álvares Pereira, que além de ser um antepassado directo dos marqueses de Cadaval, é também o patrono da GNR.

Do programa paralelo, destacam-se as master classes Raul Lino e a MúsicaA Música na Iconografia Romântica e O Movimento Romântico em Sintra, que decorrerão em três lugares que, por si só, justificariam a visita: a Quinta de Ribafria, o Palácio de Monserrate e a misteriosa Quinta da Regaleira, com a sua arquitectura e decoração recheadas de símbolos esotéricos.

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