Harmonia escangalhada

Mário Cláudio leva-nos ao estúdio de Leonardo da Vinci para conhecer a relação entre o mestre e um dos seus discípulos

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O terreno onde acaba a história e começa a especulação é tentador para quem escreve ficção. Mas para um bom romancista esse terreno pantanoso pode ser facilmente drenado usando a credibilidade. É o que manifestamente acontece com o novo livro de Mário Cláudio, Retrato de Rapaz, que disseca a possível relação entre mestre e discípulo, neste caso Leonardo da Vinci (1452-1519) e Gian Giacomo Caprotti. O outro discípulo conhecido de Leonardo, Francesco Melzi, também passará pelo livro, embora de forma mais fugaz.

Vamos ao seu encontro no dia em que Gian Giacomo deixa a condição humilde de varredor da oficina, uma espécie de Gata Borralheira renascentista, para se tornar presa apetecível, uma tentação: “O mestre levantou os olhos das linhas da missiva, e pousou-os com vagar no garoto que se lhe especava ali, de pernas ligeiramente afastadas nas calças que não lhe chegavam aos tornozelos. Eram muito azuis aquelas pupilas, do tom das pétalas da pervinca que esmalta os campos do Oreno, terra natal do rapaz, abrindo-se com serenidade na cara bronzeada, e percorrida por rugas na testa, e na comissura dos beiços.” A ordem vem logo a seguir: “Despe-te lá!” A partir daqui, e rebaptizado de Salai, “pequeno diabo”, Giacomo passa a estar ao lado do mestre no resto da sua biografia — como modelo, ajudante, amigo cúmplice, traidor. Ele que não se despiu para ser amante do mestre mas para que ele lhe reproduzisse as formas em desenhos vai transformar-se no cúmplice da mais sólida amizade vivida por Da Vinci.

De Mário Cláudio nunca se esperariam cedências a uma qualquer tentação voyeurista e especulativa de alcova, embora, e porque os sentimentos quando afloram têm de ter tradução, a tensão sexual pressione cada página do livro. E como não há nada que a linguagem e o enrolar das palavras umas nas outras não resolva, ou não devore, elas saltam como chispas por exemplo aquando de uma visita à corte romana, onde Salai se presta a protagonizar quadros vivos nos salões dos palácios da Cúria. Leonardo avança hipnotizado, mas sem nada tocar: “Toucado por uma peruca loura desse louro de urina que caracterizava as putas do Trastevere, e de beiços pintados a um roxo de Semana Santa, ali se plantava o seu Salai, metamorfoseado em velho, e nu por baixo da camisa transparente. Encarando os fiéis com um esgar, e oferecendo-se como um místico cordeiro demoníaco, o rapaz deixava-se acometer pelo terceto formado pela meretriz, e pelos eclesiásticos, os quais, ansiosos todos naquele cio que se tem por escada alternativa ao Absoluto, lhe erguiam o chambre na busca do pénis túrgido, e aberrante na galdéria em que o moço se transformara.”

Apetece dizer, quando o pano cai sobre esta cena, viradas as páginas 92 e 93 do livro: “Mais barroco e morres!” Mário Cláudio é assim o perfeito escangalhador de harmonias, neste caso renascentistas, ditas clássicas e bem comportadas, como também vai ficar demonstrado no episódio em que três Graças vão dar água pela barba ao rapaz Salai. E como se sai de tanto barroquismo? Precisamente dando um passo em frente, encostando-nos ao romantismo, com uma neve que cai incessante pontuada pelo grasnar de negros corvos, numa altura em que Da Vinci já descansa em paz.

Romance breve (139 páginas), mas que aborda uma enorme quantidade de documentos (alguns reproduzidos) e ambientes (Florença, Roma, Milão, o Vale do Loire), descritos com conhecimento de causa, Retrato de Rapaz é também um pequeno manual, pessoal e transmissível, sobre a vida do génio Leonardo: o pintor, o escultor, o anatomista, o inventor de engenhos, o botânico. Com ele esculpimos O Cavalo Sforza, subimos a bordo das suas máquinas voadoras, desenhamos os tendões de cada braço, de cada modelo, dissecamos os órgãos de alguns cadáveres. E quando, às tantas, Salai vive obcecado pelo lápis-lazúli, seguimo-lo por becos e vielas atrás de um sonho azulado.

Porque Leonardo da Vinci a todos tenta, Mário Cláudio escreveu um livro que não desilude ninguém.

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